‘A vida é sempre maior do que a arte’

maio 3, 2024

Leona Cavalli fala do desafio de homenagear nossas grandes atrizes em peça, elogia a força de Roseana Murray e comenta as transformações pelas quais passou na vida

Atrizes são capazes de transmutar-se. As grandes têm o dom da persuasão, e Leona Cavalli é dessas. Ela faz jus à leoa que traz no nome artístico e dá provas disso no teatro, lugar onde forjou sua persona artística. Teatro feito a partir de duas obras literárias e que  leva-a a dividir-se entre Rio de Janeiro e São Paulo. Na primeira, ela pode ser vista, às quartas e quintas, no Teatro dos 4, em “Ser artista”, na qual divide a cena com Anderson Müller. Na peça,  inspirada no livro homônimo de Marcus Montenegro, Leona homenageia grandes damas como Nathalia Timberg e Tonia Carrero (1922-2018), mostrando a grande atriz que  também é. Já em “O elogio da loucura”, criada a partir da obra de Erasmo de Roterdam, personifica a própria loucura. E dá conta dos recados. Para ela não há diferença entre interpretar um clássico e alguém que viveu, como a pintora Frida Kahlo (1907-1954). “O desafio para mim é o da autenticidade”, explica, por telefone, ao NEW MAG. Na entrevista, ela fala das transformações pelas quais passou – na vida e na arte – elogia a ousadia do cineasta Claudio Assis e, como escritora, saúda a força da poeta Roseana Murray.

No Elogio da loucura você personifica a Loucura para nos mostrar o quão louco é o mundo. Como foi criar uma personagem tão comumente associada a uma patologia?

A forma como o livro, escrito no século XVI, aborda a loucura é diferente de tudo o que já tinha visto antes, e esse é o ponto que fez com que me apaixonasse pelo livro. A loucura não é tratada de forma patológica, como na maioria das vezes, mas como algo que pode te levar à libertação e também à sanidade. E, a partir disso, o autor acaba por fazer, através dessas relações entre política, poder e igreja, uma reflexão crítica e irônica da sociedade, pertinente ainda hoje. Por vir de uma obra literária, não houve uma adaptação, e o texto foi levado quase que integralmente à cena. É uma visão da loucura como cura para uma existência plena.

Já em “Ser artista”, você interpreta grandes personagens femininas para, com elas, homenagear algumas das nossas maiores atrizes. Tem um ritual para este trabalho?

A primeira relação que tenho com esse trabalho é o do amor a essas atrizes. Tenho adoração e respeito por cada uma delas e, antes de termos a mesma profissão, fui e sou público delas. A primeira vez a que assisti Marília (Pêra) foi em “Brincando em cima daquilo”. Depois, assisti a Tonia (Carrero) e, assim, fui. Mais importante do que a atriz que cada uma é ou foi é a persona de cada uma. É através disso que me aproximo de cada uma delas. O meu propósito está em buscar a humanidade de cada uma. Não estou ali para imitá-las.

Sim, mas o momento mais descontraído é quando você imita a Rosamaria Murtinho. Ela levou de boa?

Ela não só gostou como voltou, levando a família e amigas (risos). Essa é uma alegria que essa temporada me proporcionou. Todas as homenageadas que estão vivas assistiram e se emocionaram. Os familiares das atrizes que já morreram também foram e receberam muito bem as homenagens. Ouvi uma coisa muito bonita da Sandra Pêra (atriz, cantora e irmã de Marília Pêra). Ela disse que a Marília teria aprovado a homenagem e isso é muito gratificante. Sou uma atriz como elas e comungo desse amor pelo teatro.

A Gladys, de Terra e paixão, precisou se reinventar. A vida já te sacudiu de forma parecida?

Constantemente. A começar pela profissão que escolhi. Venho de uma cidade (Rosário do Sul, RS) onde, até hoje, não tem um teatro. Então, escolhi ser atriz sem ter muitas referências. No Brasil acontece uma coisa maluca: sofri preconceito por ser atriz e, já estabelecida no teatro, fui discriminada por não fazer TV. E, quando comecei na TV, sofri preconceito de colegas justamente por fazer novela.

E, ao mudar-se para São Paulo, teve o privilégio de trabalhar com mestres como o Zé Celso…

Tive a alegria de ser dirigida pelo Zé Celso, por Bibi Ferreira e, depois, de trabalhar com Paulo Autran. Foi uma sorte imensa o destino me colocar no caminho dessas pessoas. E, voltando à sua pergunta, esses encontros representam pontos de virada na vida da gente. A impermanência é vital e não tem como ser feliz sem ela.

Você foi dirigida no cinema pelo Claudio Assis, um diretor de fortes arrebatamentos. Qual a característica dele que mais te fascina?

A ousadia. Trabalhamos juntos no primeiro longa dele (“Amarelo manga”) no qual ele já demonstrou essa ousadia ao misturar ficção e realidade, num resultado quase documental, no qual utilizou atores e pessoas comuns. Uma lembrança marcante é a de que, antes das filmagens, lemos o roteiro, ensaiamos e, na hora de ir para o set, ele resolveu botar a câmera no teto, mudando o que tinha sido combinado (risos). Essa ousadia é marcante nele.

Frida Kahlo já foi interpretada no teatro algumas vezes, mas não tão humanizada quanto a construída por você. Qual o principal desafio de viver uma personagem que existiu?

O desafio para mim é o da autenticidade, e esse é o único caminho possível. E foi isso o que busquei agora para as atrizes (de “Ser artista”). A responsabilidade de levar à cena alguém que existiu é a mesma de construir um personagem clássico. O desafio talvez seja o de não criar expectativas e nem se deixar levar por elas. Estudo a vida daquela pessoa, mas na hora dos ensaios, esqueço tudo. A humanidade da personagem é o que faz a interpretação ser  crível, e a vida é sempre maior do que a arte.

Falando nisso, como escritora, como vê a resiliência da poeta Roseana Murray?

Ela conseguiu simplesmente fazer uma nova vida a partir da tragédia pela qual passou, e isso faz dela uma luz para todos nós. Assisti recentemente a um vídeo em que ela falava do episódio com muita coragem, enaltecendo os profissionais do SUS (Sistema Único de Saúde). Pela resiliência que demonstra, ela vai ser capaz de transformar essa dor profunda em arte.

De bate-pronto: em que momento a loucura nos redime?

Quando ela pode ser transformada em criatividade.

E ser artista é…

É ser, antes de tudo, humano. É poder viver criativamente e fazer disso sua existência.

Crédito da imagem: Isac Luz

 

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