‘Temos de defender as ideias do Zé Celso’

fevereiro 23, 2024

Renato Borghi celebra no palco 65 anos de carreira e fala da importância do Oficina, do imbróglio com o Grupo Silvio Santos e diz que o teatro o mantém vivo

Renato Borghi é um patrimônio vivo do teatro brasileiro – e a frase nada tem de exagerada. O ator ajudou simplesmente a fundar o Teatro Oficina e, nele, atuou em montagens revolucionárias que peitaram, com coragem e galhardia, a ditadura instaurada no país em meados dos anos 1960 e que entraram para a História. São encenações como as de “Galileu Galilei”, de Bertold Brecht (1898-1956), e “O Rei da Vela”, de Oswald de Andrade (1890-1954), esta uma das molas propulsoras da Tropicália. A colaboração de Borghi para o teatro é imensa. O ator está de volta aos palcos com “O que nos mantém vivos”, com o qual celebra 65 anos de carreira. Aclamado em São Paulo e indicado a importantes prêmios, o espetáculo aporta no Espaço Sérgio Porto, no Rio de Janeiro, neste fim de semana. O ator veio ao Rio, cidade onde nasceu, de carro, na tarde da última quinta-feira (22), quando conversou com NEW MAG por telefone. Na entrevista, ele reitera a importância de preservar as ideias do diretor Zé Celso Martinez Corrêa (1937-2023) ao comentar o imbróglio entre o Oficina e o Grupo Silvio Santos, confirma que partiu dele a ideia para a montagem de “O Rei da Vela” e, prestes a completar 87 anos em março, é categórico: “Prefiro enfrentar a plateia a ficar em casa ”.

Você que foi combativo contra a ditadura entre os anos 1960 e 70 volta aos palcos quando vêm à tona os meandros da tentativa fracassada de um novo golpe de estado. Nossos inimigos ainda são os mesmos?

Esse espetáculo veio da necessidade de falar contra as correntes fascistas que voltaram com muita força no mundo. A montagem é dividida em diferentes partes, muitas delas fundamentadas por textos do Brecht. Um deles é “A cruzada das crianças”, no qual ele faz um retrato do infanticídio que acontece até hoje em Gaza. Outro texto utilizado é o de “Santa Joana dos Matadouros”, no qual a Debora Duboc vive o papel principal e que trata do desvio dos objetivos das religiões por seus líderes. São organizações que acabam interferindo no poder econômico dos cidadãos e nos rumos políticos do próprio país.

Já que falamos no Brecht, uma das temáticas da peça é Deus acima de todos e,nela, você volta a um trecho do Galileu Galilei, na qual viveu dois papéis em diferentes situações…

Fui o Bispo na primeira montagem e, na segunda, o próprio Galileu Galilei.

Qual das novas descrenças da ciência te incomoda mais?

O que nós vivenciamos no Brasil nos últimos quatro anos foi o ódio a tudo: à ciência, ao saber, à informação, à cultura e às florestas. Vivemos um completo retrocesso de ideias provocado pelo negacionismo. E esses fantasmas continuam nos assombrando. O dia 25 agora será um dia importante (um ato pró-Bolsonaro está marcado em São Paulo). Temos ainda muito a combater.

Recentemente, o Grupo Silvio Santos  ergueu muros de tijolos nos acessos ao Teatro Oficina. Como vê o desenrolar dessa questão?

O Zé Celso tinha a ideia de transformar o entorno do Oficina num parque, e temos de defender as ideias do Zé. Ali, naquele terreno, passa o Rio Anhangabaú. Ele está soterrado, mas está ali. Acho que seria muito saudável ter ali não somente um teatro, mas um parque, uma área pública. O autoritarismo do Grupo Sílvio Santos só corrobora a brutalidade do poder econômico no Brasil.

Você construiu uma trajetória na TV que te possibilitou passar por diversas emissoras. Hoje, os contratos são por obra. Não ter um grilhão na TV foi uma decisão consciente?

Nunca tive um grilhão com uma emissora de TV por uma razão simples: a TV Globo implicou com Zé Celso, comigo, com a Ítala (Nandi) e com o (diretor e tradutor) Fernando Peixoto. E isso possibilitou com que nos dedicássemos plenamente ao teatro. Trabalhamos muito no teatro porque a principal emissora de TV do país não nos queria no seu elenco.

“O Rei da Vela” foi uma montagem revolucionária no teatro brasileiro. É verdade que partiu de você a ideia de encenar esse texto?

Sim. Ali por 1967, eu estava em casa numa tarde de chuva quando resolvi fuçar livros na estante. Uma edição amarelada pelo tempo chamou minha atenção. Puxei por curiosidade e era “O Rei da Vela”, do Oswald de Andrade. Comecei a lê-la ali e, entusiasmado, acabei por ler trechos para o Zé Celso. Eu praticamente exigi que montássemos “O Rei da Vela” (risos).

Você reinterpretou Abelardo I em 2017, 50 anos depois da estreia de “O rei da vela”. O que você quis preservar daquele personagem e o que fez questão de modificar nele?

Quis preservar o poder das ideias do Oswald e aquela violência que o Abelardo tinha. Oswald de Andrade é um autor que precisa ser redescoberto no Brasil.

E o que modificou naquela personagem?

As modificações vieram através da experiência que o tempo me deu. O Abelardo tinha muitas falas longas, o que chamamos de “bifões”, e, nos anos 1960, nos dias de espetáculo, eu precisava descansar à tarde para encarar o personagem à noite. Nesta segunda vez fiz o personagem de forma mais relaxada. Acho que fiz melhor o Abelardo na segunda vez do que na primeira. Eu era mais dono da minha arte.

Você trabalhou nos anos 1960 com Fauzi Arap, um grande ator, comumente associado à direção dos shows da Maria Bethânia. Qual característica do Fauzi é pungente nas tuas lembranças?

O Fauzi foi um dos maiores atores que tive oportunidade de ver em cena. E isso vale tanto para o Brasil quanto para o exterior. Contracenar com ele ou vê-lo atuar era uma experiência muito forte.

O que diria àquele Renato Borghi iniciando na profissão em fins dos anos 50?

Diria para ele ir com calma porque ele chegará lá. Diria para acreditar na técnica e no que aprendeu nas aulas do Kusnet (Eugênio Kusnet, encenador e criador do processo de análise ativa do texto). E diria para usar mais o seu poder de análise e ficar mais à vontade em cena, não ser tão denso. Fui com muita sede ao pote e isso me deixou extenuado.

E, afinal, o que mantém Renato Borghi vivo?

A única razão que tenho para estar vivo é o teatro. Prefiro enfrentar a plateia a ficar em casa assistindo à TV. Claro que, aos 87 anos (que completa em março), tenho minhas limitações (ele já submeteu-se a quatro cirurgias na coluna e, recentemente, a uma intervenção cardíaca) e não vou sair serelepe pelo palco, mas estou à vontade em cena. Nasci na Tijuca (Zona Norte do Rio de Janeiro) e volto à minha terra disposta a dar o meu melhor.

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