‘Quero uma pintura no coração das famílias’

novembro 20, 2022

O muralista Eduardo Kobra fala sobre sua trajetória, do reconhecimento internacional e do legado que deseja deixar

A arte liberta, rompe barreiras e resgata sonhos. O muralista Eduardo Kobra sabe bem disso. Nascido em 1975, no Jardim Martinica, bairro pobre da Zona Sul de São Paulo, o artista jamais imaginou que as suas 3 mil obras alcançariam 35 países (até então) dos cinco continentes. Desde 2016, detém o recorde de maior mural grafitado do mundo. Foi o primeiro brasileiro a pintar um mural no Walt Disney Resort, na Flórida, na qual escolheu retratar, simbolicamente, todas as crianças e adultos do mundo. As conquistas não param. Além de estar trabalhando a todo o vapor, Kobra tem a sua vida retratada no documentário “Kobra – Auto retrato”, da premiada Lina Chamie, em cartaz nas principais capitais brasileiras. Em entrevista ao NEW MAG, o artista fala sobre a sua trajetória de vida, as obras que marcaram e a busca pela paz interior, como maneira de transformar a si mesmo e ao mundo.

Do garoto da periferia de São Paulo que pichava muros de forma clandestina, você se tornou um dos maiores muralistas da atualidade. Como você vê a sua trajetória, desde os seus primeiros passos, até o reconhecimento que tem hoje no Brasil e no exterior?

É um reconhecimento fruto de superação e dedicação. Eu acordo todos os dias desempregado, o desafio de hoje é outro, mas continuo com a mesma motivação e persistência de quando comecei. Eu acho que a arte possibilita tudo isso e me deu a oportunidade de conhecer culturas, países e histórias. Eu, quando menino, jamais imaginava que algo do tipo pudesse ocorrer, mas o que eu sabia era que eu não ia desistir. Não há nada de glamour, o que há é busca por inspiração, qualidade, evolução, pesquisa, história e dar o melhor de si, sempre. Eu me sinto muito feliz e realizado por todas essas coisas estarem acontecendo. Eu tive a oportunidade de ter um livro, agora vou ter um filme, são presentes de Deus.

Você já pintou o rosto de diversas pessoas nos muros de vários lugares do mundo. Entre as pessoas retratadas, qual das reações mais te tocou e qual mais te surpreendeu?

Provavelmente foi um mural que eu fiz na Holanda, em 2016. Todos os trabalhos que eu faço são uma imersão. Quando eu estive na Índia, visitei os museus relacionados ao Mahatma Gandhi. A mesma coisa foi com o Martin Luther King Jr , nos EUA, o Nelson Mandela (1918-2013), enfim. Mas acho que o mural da Holanda me tocou porque lá fizeram a proposta de eu pintar o filósofo Baruch Spinoza (1632-1677). Eu não tinha conhecimento sobre ele e não podia simplesmente pintá-lo porque eu não faço nada do qual não esteja envolvido. Daí quando estudei a história de Spinoza, eu percebi que os princípios que ele acreditava eram muito diferentes dos meus, como os princípios judaicos, por exemplo. Eu acabei me recusando a fazer este mural que todos, desde as autoridades e até a própria cidade, queriam que eu fizesse. Eu trouxe a proposta de pintar Anne Frank  Foi uma luta porque todos foram contrários no primeiro momento, até a própria Casa Anne Frank. Após muita conversa e negociação sobre a relevância da história dela, todos autorizaram, o mural foi realizado e transformou-se em um marco na minha história. Eu estive no Museu do Holocausto, em Israel, é uma história que comove a todos nós. Eu chorei muito lá.

Entre os 3 mil murais feitos por você, há algum com uma história que tenha te marcado de forma diferente?

Eu vou responder esta pergunta exatamente como uma resposta que meu filho, Pedro, me deu esses dias. Ele queria um brinquedo e eu disse a ele: “Mais você já tem tantos brinquedos, tantas coisas, qual deles você mais gosta?” E ele me respondeu que o brinquedo que ele mais gosta é aquele que ele ainda não tem, porque todos os outros foram e são importantes, mas o que ele ainda vai ganhar é o que ele sonha em ter. Eu achei isso muito parecido com o que eu penso (risos). Todos os murais, para mim, são relevantes, todos trazem uma história e me marcaram de uma forma. Seria muito difícil marcar algum deles como principal. Eu sigo entusiasmado a criar novos painéis em lugares diferentes no mundo, então, acredito que o próximo que eu vou fazer será o principal.

Você retratou fatos históricos, mensagens de esperança e personagens que lutaram em prol da paz. Estamos mais próximos de voltar a ter um Brasil pacificado?

Eu acho que a paz é algo que deve ser construído internamente. É uma busca pessoal, individual e intransferível. Não é algo que esteja acontecendo por um período ou momento. Eu presenciei e vi isso durante toda a minha vida andando pelos países. A gente nota que existem violências, racismos, preconceitos, intolerâncias e pessoas cada vez mais cruéis em todos os lugares. Isso tá muito ligado a quem buscamos ser. Posso dizer por mim. Quando eu fui buscando essa paz, fui melhorando como ser humano e consegui transferir isso para quem estava próximo, como o sal da terra mesmo. Quando começamos a ser mais gentis, menos intolerantes e mais pacientes, naturalmente evoluímos e isso acaba mudando a nossa família, os amigos que estão próximos, as pessoas que estão nos observando e por que não as nossas cidades, o nosso país e até mesmo o nosso planeta? Eu acho que a paz está muito ligada ao conhecimento, a partir do momento que encontramos essa evolução, naturalmente vamos deixar de ser racistas, violentos e agressivos. Nenhum tipo de guerra ou violência pode ser justificada.

Onde você gostaria de deixar um mural e ainda não conseguiu?

Talvez agora a marca que eu quero deixar é de transformação e uma pintura no coração das famílias, das pessoas, das crianças, dos jovens e das comunidades por meio do Instituto Kobra, que eu criei. Eu consegui toda a documentação, a gente vem trabalhando em prol disso e agora vou ter um espaço físico com todos os voluntários trabalhando por ali. O caminho que estou buscando com o meu trabalho é esse, dar esperança e sonhos. Permitir que as pessoas possam sonhar em ser artistas, em almejar um mundo melhor e em dar uma oportunidade melhor para os seus pais. Acredito que é por aí.

Crédito da foto: Courtney Kiefer (Disney World News)

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