‘Querem tirar tudo da gente!’

junho 10, 2022

Diogo Vilela fala, em entrevista, contra o cancelamento de autores e reflete sobre o país e as relações humanas

Há atores que entregam-se a seu ofício sem medir esforços. Diogo Vilela é dessa estirpe. Quando estreou no teatro em “Ensina-me a viver”, peça na qual teve oportunidade de contracenar com a grande atriz Henriette Morineau (1908-1990), o ator e diretor Sergio Britto (1923-2011) bradou da plateia que um grande ator havia surgido. E o tempo provou que Britto tinha razão. Ao longo de mais de 50 anos de carreira, Diogo, cujo verdadeiro nome é José Carlos Monteiro de Barros, mostrou-se apto a encarar os mais variados gêneros de espetáculos, transitando com desenvoltura entre autores clássicos (Shakespeare e Tchekhov são dois deles) a talentos contemporâneos como o saudoso Vicente Pereira, expoente do chamado Teatro Besteirol e autor de “Solidão, a comédia”, um marco na carreira de Vilela. O ator volta, a partir desta sexta (10), a reencontrar um papel que viveu pela primeira vez em 2006: Cauby Peixoto (1931-2016). O reencontro com esse personagem emblemático da nossa cultura dá-se agora no musical “Cauby, uma paixão”, que ocupa o Teatro dos Quatros (o nome é agora grafado assim), no Shopping da Gávea, Rio de Janeiro, até 31 de julho. Nesta entrevista ao NEW MAG, o ator relembra o contato com o cantor, reflete sobre o cancelamento de autores (e sobre a situação do país) e revela planos para o futuro.

Você volta a viver Cauby pela terceira vez. O que descobriu de novo nesse reencontro com o personagem?

Uma das coisas que o Cauby me ensinou foi a ser resiliente nesta profissão. Isso é algo dele com que mais me identifico. Ele foi um artista que sempre esteve em função da sua voz enquanto sou um ator que sempre procurou sua voz. Para os atores da minha geração, a voz tem um significado importante.

Ele ainda estava vivo quando você o interpretou pela primeira vez. O que ele achou?

Ele ficou muito empolgado por não ver no palco uma imitação fula, o que foi muito importante para ele. O Cauby foi muito sacrificado por especulações sobre a sua carreira e a sua vida. Ele era uma pessoa de fino trato e o que isso significa? Ele era alguém educado, lacônico, que pensava e refletia.

Vocês chegaram a ficar próximos?

Sim, nos encontramos muitas vezes. Certa vez, estava em São Paulo com minha produtora e fomos assisti-lo no Bar Brahma. Findo o show, ele disse (imitando Cauby): “Volta (com o espetáculo)”. Expliquei que era uma produção grande, que não tínhamos dinheiro, e ele insistiu: “Você vai conseguir”. Acabamos voltando, mas ele não chegou a rever. A notícia da morte dele chegou quando estávamos justamente preparando a volta do espetáculo.

Você viveu também Nelson Gonçalves no musical “Metralha”. Como foi para você construir esses personagens de uma mesma época, mas com estilos tão diferentes?

No caso do Nelson, que ainda tinha a questão de gaguejar ao falar, eu precisei fazer um trabalho intenso com a (fonoaudióloga e preparadora vocal) Glorinha Beutemüller, além das aulas de canto. O Nelson gostou muito do resultado também. Soube depois, pela filha dele, que, antes de morrer, ele queria que o interpretasse também no cinema. No caso de você interpretar um cantor, existe uma questão que é a de aquele personagem ter um corpo físico. Não se trata de botar uma peruca e fazê-lo somente. Existe todo um trabalho de técnica que é necessário e sou um ator com uma consciência do que é cantar. Aprendi que as vozes não são iguais, mas que os timbres podem ser semelhantes. Sou um barítono com extensão de duas oitavas, o que me possibilitou chegar aos graves do Nelson e, depois, aos agudos do Cauby. Não acredito em nada que não seja trabalhoso. Improvisos a gente já faz na vida.

Você atuou em clássicos de autores como Tchekhov e Gogol. Como vê esse cancelamento de grandes autores russos em razão dessa guerra de agora?

Estamos vivendo uma transição de valores. Não devemos ter um julgamento definitivo sobre coisa alguma. Somos seres estressados num mundo altamente tecnológico, onde precisamos honrar nosso passado e pouco nos preocupamos com o futuro. O ser humano está altamente competitivo, vivendo sem afetividade. Vivemos quase como os personagens de “Blade Runner” (filme de ficção científica de 1982). Com o advento das redes sociais, houve um certo perecimento da arte. Hoje, todo mundo pode ser artista, pode ser protagonista da sua própria história. Por isso, acho ridículo cancelar autores que estão entre os grandes da literatura mundial. Autores que foram pungentes em relação à época em que viveram, ao sofrimento humano, às condições inóspitas do país onde viveram, ao frio e à secura característicos daquele lugar. Temos de deixar de ser primários nas avaliações que fazemos. Não nos aprofundamos. Temos um coração, mas precisamos nos aprimorar mais. Há questões mais sérias para discutirmos como a questão da injustiça social que temos no nosso país, onde as pessoas vivem nas ruas, em condições desumanas…

E que hoje estão ainda piores…

A gente paga um preço muito alto por tudo nesse país. A gente tem o SUS com o qual querem acabar agora. Querem tirar tudo da gente! Estamos vivendo uma época de desumanidade e querem ficar discutindo posicionamentos ideológicos, se você é de esquerda ou de direita, quando existe uma questão humanitária que é mais importante do que tudo. A questão é como sobreviver nisso que estamos vivendo. Ser humanista não significa ser comunista. Temos muito que amadurecer ainda.

Você atuou em “Guerra dos sexos” e em “Sassaricando”, trabalhando em ambas com Paulo Autran. Qual a lembrança mais marcante deixada por ele na tua trajetória?

Em “Guerra dos sexos” não ficamos tão próximos, o que veio a acontecer em “Sassaricando”. Eu tinha muita admiração pelo Paulo. Na época em que resolvi encenar “Otelo” (de Shakespeare), ele me alertou para fazer o Iago no lugar do papel principal e foi o que de fato fiz. “O Iago é muito melhor”, ele me disse. Quando ele já estava bem debilitado, ele me indicou para substituí-lo num Molière que ele estava ensaiando. Isso foi, para mim, um tremendo gesto de deferência que ele me deu. Acabei não podendo substituí-lo porque já estava às voltas com o “Otelo”.

É muito bacana quando um grande ator dá a um colega esse voto de confiança, não?

Com o Chico Anysio aconteceu algo semelhante. Ele havia quebrado o queixo e fui visitá-lo. Ele me pediu para substituí-lo no programa e, na hora, me deu uma tremedeira danada. Imagina a responsabilidade? “A tua praia é a comédia. Tem que parar com esse negócio de querer ser galã”, ele me disse. Imagina, nunca quis ser galã! Acabou que não aceitei. Tive medo de dar esse passo. É o único arrependimento que tenho na minha carreira.

Qual papel ainda gostaria de interpretar?

Vários. Quero fazer Nelson Rodrigues, que ainda não fiz, e o teatro realista norte-americano, um Arthur Miller, por exemplo. Estreei no teatro pelas mãos de Henriette Morineau, com quem trabalhei em “Ensina-me a viver”, e, de lá para cá, pude fazer muitas coisas que quis. Trabalhei em musicais, na “Gaiola das loucas”… Ao longo da carreira, vi que tinha um tempo de comédia que fui descobrindo aos poucos. Eu tenho com o teatro alguns deveres emocionais. Quero dar qualidade a ele e quero, através dele, dar qualidade ao meu país. Não atuo para obter fama ou seguidores. Minha ligação com o teatro é quase religiosa, por isso fico mais na minha. A gente não pode confundir a cabeça do público e dar, por isso,  um passo em falso. Por isso procuro ter muita responsabilidade com o que escolho interpretar.

E qual personagem quis interpretar e não foi possível?

Em 1989, eu fazia a TV Pirata e decidi levar ao palco minha primeira produção: “Solidão, a comédia”, do Vicente Pereira, de quem cuidei no fim da vida dele. Na mesma época, o (diretor) Paulo Ubiratan me chamou para atuar no remake de “Mulheres de Areia”. Eu ia fazer o Tonho da Lua. Ele recomendou, inclusive, que adiasse a peça, mas não podia. Era uma produção grande que me custou US$ 90 mil. Indiquei para o papel o Marcos Frota, que tinha feito um excelente trabalho em “Feliz ano velho”, e que acabou fazendo o Tonho muito bem. Acabei optando pelo teatro e fiz uma peça que foi muito importante na minha trajetória. Até hoje tem gente que fala sobre ela quando me encontra. Não dá para se ter tudo.

 

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