‘O teatro só existe se tiver verdade’

setembro 9, 2022

Ney Latorraca fala da experiência de fazer teatro de casa, relembra papéis marcantes na TV e revela o desejo de trabalhar com Marieta Severo

Para o ator e diretor José Wilker (1944-2014), há dois tipos de atores: os que conseguem imprimir personalidades diferentes aos personagens e os que impõem sua personalidade a cada um eles. Sob essa cartilha, Ney Latorraca é um caso fora da curva. Ao mesmo tempo em que deu vida aos mais variados tipos – todos marcantes – no teatro, no cinema e, sobretudo, na TV, empresta sua persona irreverente a cada papel. Isso faz dele, de fato, um ator único e um dos mais queridos pelo público – de crianças a adultos. Muitas vezes, foi chamado pelos fãs de “Seu Neyla”. Natural que a blague seja o título de seu novo espetáculo, no qual ele conta sua trajetória e revive personagens marcantes. O espetáculo, que chega ao Teatro FAAP, em São Paulo, neste fim de semana, inova no formato, híbrido de presencial e remoto. Ney está na sua casa, devidamente acompanhado de uma equipe, e contracena com o elenco, que está no palco, através de câmeras e demais adventos tecnológicos. Tudo ao vivo e em tempo real. A nova experiência não intimida o ator, pelo contrário. “O teatro me rejuvenesce”, conta ele, do alto dos seus 78 anos, nesta entrevista por telefone ao NEW MAG.

Você está fazendo teatro da sua casa, ao vivo, abrindo sua privacidade para uma equipe que te acompanha em tempo real, durante 1h30m. Como é essa experiência Mudou algo no seu ritual?

Ajo como se estivesse no teatro. O ritual é o mesmo. Quando estou em temporada, gosto de chegar ao teatro muito mais cedo e, estando em casa, começo minha preparação com a mesma  antecedência. Não mudou quase nada. Falo isso porque  ficou até mais tenso, pois tenho de ficar atento ao que acontece no palco durante uma hora e meia. É puxado, mas eu gosto. A cada início de espetáculo, fico nervoso como na primeira vez. Estou com 78 anos, e a cabeça continua com 18. Não estou preocupado com a idade. O teatro me rejuvenesce.

No espetáculo, você rememora personagens marcantes da sua carreira como a Anabela Freire, da novela “Um sonho a mais”. Essa personagem foi inovadora por ser feita por um homem que entrava na casa das pessoas, às 19h, em meados dos anos 1980.

A Anabela foi uma personagem que, ao longo da trama, ficou muito poderosa. E isso se deu porque o público reagiu muito bem a ela. Claro que uma parcela da sociedade chiou, alegando que um homem se vestir de mulher era too much para o horário. Mas não houve nenhum tipo de recrudescimento quanto a isso. Quando reclamaram, ela já estava muito poderosa.

O Vlad, de “Vamp”, e o Barbosa, da “TV Pirata” são dois papeis muito marcantes na tua trajetória. Qual deles é o mais popular?

Queriam um galã para o Vlad. Como a novela iria ao ar às 19h, sendo assistida por muitas crianças, o personagem precisaria de uma leveza. Quando dei a primeira mordida no pescoço da Claudia Ohana, saiu aquele (faz a voz do Vlad) “gotooooso”. Pronto! O signo havia sido criado, e o caminho era aquele. Já o Barbosa foi criado juntamente com o Guel (Arraes, diretor) e com outras pessoas da equipe. E aí ele foi aparecendo, com aquele bico, aquela barriguinha, a peruca ao contrário, o que fez dele aquele tipo sexy. Ele tinha ainda essa peculiaridade de repetir a última fala de outro personagem ou, se estivesse sozinho, de encostar na parede e dizer (faz a voz de Barbosa): “pareeeeede”. Mas, voltando à pergunta, entre eles o mais popular sou eu mesmo. As pessoas me associam a outros papéis. Tem gente que, ao me ver, lembra do Quequé (o caixeiro viajante de “Rabo de saia”) ou do Felipe (de “Escalada”) e assim por diante.

Já que falou do Quequé, você teve oportunidade de trabalhar com o Walter Avancini, um grande diretor que tinha o cuidado também de dirigir bem os atores. Como foi esse encontro entre vocês?

O Avancini tinha o dom de lançar estrelas. Foi ele quem lançou a Regina Duarte e a Sonia Braga. Eu fazia “Hair”, nos anos 1970, e, num determinado dia, fazíamos duas sessões. O Avancini assistiu à primeira e, ao fim, foi ao camarim, que era coletivo, cumprimentar os atores. Ele falou com um por um, pulou a minha vez e seguiu falando com o elenco. O tempo passou e nos reencontramos na TV Globo, quando eu fazia “Escalada” (novela na qual Ney estreou na emissora). “Que sucesso, hein!”, ele exclamou ao me ver. Aproveitei e perguntei o porquê de ele não ter falado comigo no “Hair”. “Por que você ainda não estava pronto”, ele respondeu, complementando em seguida: “E agora você está”. E me chamou para fazer “O grito”, do Jorge Andrade.

Numa cena de “Apenas uma mulher de negócios”, você precisava ser agressivo com a personagem da Renata Sorrah e chegou a quebrar uma costela dela. Isso é fato ou é lenda?

Isso nunca aconteceu. Um gesto agressivo que eu tinha era o de bater no rosto dela quando ela tentava me envenenar. Essa peça foi inspirada num caso verídico que o Fassbinder (autor do texto) leu no jornal. Aquela mulher matou 56 homens! Na peça, eram três os maridos e um irmão, e eu interpretava todos eles. Acho que começou aí essa coisa de eu me dividir entre vários personagens, o que se repetiu em “Um sonho a mais” e em “Irma Vap”. A direção era dividida entre o Walter Shorlies e o Sergio Brito. O Shorlies não falava português, então a Renata e o Sergio  traduziam o que ele falava para mim. Foi uma experiência muito interessante.

Quando se fala em “Irma Vap”, destaca-se o fato de a peça ter ficado 11 anos em cartaz, ter entrado para o Guiness etc. Nela, você e Marco Nanini foram dirigidos por Marília Pêra revezando-se em diversos papéis. O que foi mais difícil naquele trabalho?

O mais difícil foi criar aquele tanto de personagens. Eram 56 trocas de roupas e uma delas durava seis segundos! Como diretora, a Marília sugeria tipos para a gente se inspirar. No caso do Lord Edgar, ela dizia que ele era o Jardel Filho: “Ele é alto e tem olhos azuis”. Como vou criar isso? O jeito era acreditar. E o teatro só existe se tiver verdade.

E o que achou da nova montagem com o Mateus Solano e o Luís Miranda?

Gostei muito. Adorei a direção (de Jorge Farjalla) e o trabalho dos atores! É natural que, com o passar do tempo, uma montagem teatral volte com uma nova proposta. E, nesse ponto, a montagem foi muito bem-sucedida.

Um momento comovente no espetáculo é quando você homenageia as grandes atrizes com as quais trabalhou…

Aquele momento é o mais difícil do espetáculo para mim, pois preciso segurar a emoção. De todas elas, a única ainda viva é a Natalia (Thimberg). A Lilian Lemertz, quando trabalhou na Record, exigiu no contrato que eu estivesse em todas as novelas em que ela atuasse Quem faz isso por um colega hoje em dia?

Com qual grande atriz falta ainda trabalhar?

Adoraria trabalhar com a Marieta Severo. Nunca trabalhamos juntos. Quando a Carla Camurati filmava “Carlota Joaquina”, fui visitá-la de surpresa no set e ela inventou de me incluir numa cena. Fui vestido de Debret e, quando estou pintando, a Carlota (Marieta) passa ao fundo e dá uma pichada no Debret pois preferia Velázquez. Essa cena dura alguns segundos e foi a única vez em que trabalhamos juntos. Adoraria trabalhar também com a Andréa Beltrão.

E o que gostaria de ter feito no teatro e que não foi possível?

Gostaria de ter feito “Mão na luva”, do Vianinha (Oduvaldo Viana Filho). Quando o Aderbal (Freire Filho) me convidou, estava no ar com “Um sonho a mais”, gravando 500 cenas e não tinha como conciliar com a preparação de uma peça.

E qual papel pretende ainda representar?

Adoraria ficar parado num lugar por um tempo e em completo silêncio. Isso poderia ser feito no vão central do Masp ou no MAM. As pessoas passariam, me observariam e eu lá, parado. Poderia fazer também como essas estátuas vivas: as pessoas depositariam uma contribuição e eu mudaria de posição. É isso o que eu gostaria de fazer.

Crédito da imagem: Markos Fortes

 

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