‘O politicamente correto define uma maneira de comportamento’

março 29, 2024

Grace Gianoukas brilha como Dercy Gonçalves no teatro e lembra do 'Terça insana' e fala das mudanças no humor e no mundo

“O caráter de uma pessoa pode ser medido pelas coisas das quais ela ri”. A frase, atribuída ao poeta alemão Goethe (1749-1842), é um dos nortes na trajetória artística de Grace Gianoukas. Na virada do antigo para o novo milênio, ela sacudiu as noites de São Paulo com um projeto inovador. O “Terça insana” aglutinou talentos até então desconhecidos e, por conta do registro em DVD, mudou no país a cara do humor, então cheio de estereótipos. E não tardaria para Grace chegar à TV onde tipos como Teodora Abdala, de “Haja coração”, caíram no gosto do público, a ponto de a personagem, cuja vida seria curta, voltar à novela. Essa empatia de Grace vem da dedicação ao seu ofício. Tanto que hoje, aos 60 anos, ela tem todas as credenciais para viver no palco aquela que foi uma de nossas maiores comediantes: Dercy Gonçalves (1907-2008). Por “Nasci pra ser Dercy”, ela ganhou prêmios como o Shell e o APCA, como Melhor Atriz, e o I Love PRIO de Humor, por sua Performance. O público carioca pode conferir o brilho da atriz em duas únicas apresentações, neste fim de semana (30 e 31 de março), no Teatro Riachuelo, Centro da cidade. “Ainda sou do olho no olho e da troca com o público”, conta ela nesta entrevista, na qual lembra os tempos de “Terça insana”, da amizade com o grande escritor Caio Fernando Abreu (1948-1996) e fala das transformações no humor e no mundo cada vez mais tecnológico.

Você não imita, mas personifica a Dercy. Qual a linha escolhida para compor a personagem?

Não sou uma imitadora e nem uma humorista, mas uma atriz. Então, mais importante do que chegar na Dercy era chegar na Dolores, a pessoa que ela foi, que, desde a infância,  levou muita porrada da vida até tornar-se a Dercy. Ela criou um estilo que acabou sendo o jeito brasileiro de se fazer comédia. Outro norte que tive foi o de estudar o tempo de comedida dela, mais clownesco.  Outro dado importante foi perceber o ritmo da sua fala, que é algo geracional e influenciado pelo estilo da Rádio Nacional. Minhas tias tinham também esse jeito de falar (e simula a fala). Esse trabalho me possibilitou unir minhas ferramentas de atriz à minha bagagem emocional.

Na peça, você chega para um teste num estúdio high tech e lida com supostas praticidades da tecnologia. Aos 60 anos, lidou bem com a transição entre a vida analógica e a tecnológica?

Fui obrigada de certa maneira a me inserir nesse mundo. Lembro que quando foi feito o DVD da “Terça insana”, dois meses depois ele estava pirateado e sendo vendido na  7 de Abril. Pouco depois, os vídeos chegaram à internet e fui me aproximando daquele mundo. Acabamos abrindo caminho para gerações como a do Porta dos Fundos. Assisto a coisas pela internet, mas não tenho saco para ficar horas ali. Ainda sou do olho no olho e da troca emocional com o público. Mas é claro que esse momento que estamos atravessando é irreversível.

Esse excesso de tecnologia é um caminho sem volta então?

O mundo em que vivemos está se tornando cada vez mais desumano. Você telefona para tratar de um serviço e é atendido por uma máquina. Você tenta resolver pela internet, e o sistema sai do ar. Não existe mais troca. Somos reféns da ordem de um sistema novo.

O bordão “E tudo e tal” caiu nas bocas sem ter surgido na TV. Ela é hoje imprescindível para um comediante?

Não mais. Estamos vivendo um momento de virada. A TV aberta lida com um determinado público, e o streaming, com outro. E há de chegar o momento em que essas duas linguagens vão precisar conversar porque a tendência é a de que as coisas mudem cada vez mais. O mundo ao redor muda o tempo inteiro, e você pode se especializar, mas é necessário que essa sagacidade e inteligência se unam em prol de um bem maior. Hoje, nos pautamos por valores como o número de seguidores que um indivíduo tem. OK, mas e daí? Na vida há um caminho a seguir e ninguém começa de cima. É preciso também um distanciamento crítico para o que se estabelece como norma.

Falando nisso, o Matheus Marques Porto mostra no instagram que as imitações ainda têm lugar no humor. Qual característica mais te atrai no trabalho dele?

O Matheus traz essa sagacidade dos novos artistas com uma vantagem: ele tem uma bagagem de referências, pautada pelo cinema, pela TV e pelo teatro, e da qual ele sabe muito bem tirar proveito. A força dele não está somente na perfeição da dublagem, mas na construção do texto, que é muito inteligente. O que ele faz é absolutamente genial.

Falando em amizades, você e Caio Fernando Abreu foram amigos. Conta uma característica dele da qual só os amigos privaram.

O Caio passava uma temporada em Porto Alegre quando foi me assistir. Por timidez, não falou comigo no camarim. Depois nos encontramos e ele me convidou para ir com ele a São Paulo com o argumento: “Porto Alegre não te merece, Grace”. Aproveitei que a faculdade estava em greve, arrumei minhas malas e fui. O Caio me acolheu como a uma filha e devo a ele muita coisa que conheci a partir de então. Foi ele que me levou para assistir a Maria Alice Vergueiro, por exemplo. O primeiro livro da Hilda Hilst que li foi por indicação dele. Ele me abriu um universo que até então não existia para mim.

E qual a lembrança mais marcante que tem dele?

Ele já estava bem doente (Caio morreu em 1996, por complicações decorrentes da Aids)quando fui visitá-lo no hospital. Sabendo que não seria fácil para mim, me recebeu cantando “Por isso eu sou positiva\ Positiva” (num trocadilho com “Vingativa”, das Frenéticas). Caio era capaz dessas coisas.

O terça teve dez elencos fixos. Você foi uma espécie de Quincy Jones ao lidar com todos aqueles egos, não?

Exato. O Terça tinha seus objetivos e diretrizes claras. O humor naquela época estava muito adolescente, pautado por estereótipos como o de que toda mulher era puta ou todo negro, trambiqueiro. Nosso barato era o de inserir na comédia conceitos mais adultos sem que ela perdesse sua pureza. Uma das nossas propostas era a de fazer com que o público parasse de rir do oprimido e fazer com que a sociedade enxergasse suas imaturidades. A beleza da existência está no diverso.

E como era lidar com todos aqueles talentos?

Todos ali eram o que chamaria de atores criativos e compulsivos (risos). Era muita gente com muitas ideias. Tínhamos nossas regras de não fazer imitações nem bullying. As novas gerações foram chegando, e as regras eram mantidas. E uma coisa muito forte eram os temas. Houve uma vez em que pedi que lessem “O povo brasileiro”, do Darcy Ribeiro. As férias terminaram e nenhum deles havia lido uma linha do livro. O jeito foi botá-los para assistir aos documentários sobre o Darcy. Feito isso, fomos às ideias. Nosso barato nunca foi o da comédia pela comédia.

Uma das funções do humor é a de criticar o comportamento humano. Hoje o politicamente correto pauta muitos discursos. Não estaríamos confundindo crítica com apologia?

O politicamente correto define uma maneira de comportamento. Vivemos hoje a época dos discursos,  a sociedade brasileira está de pé com o seu melhor e com o seu pior. E a comédia precisa acompanhar isso. Muitas minorias foram silenciadas e, hoje, estão organizadas e fortalecidas. Isso no mundo todo. Soube que há na Europa uma corrente de mulheres louras que não quer mais ser vista de forma sexualizada. As pessoas têm, cada uma, suas feridas e as coisas precisam ser discutidas. E não há lugar melhor do que o palco. E o humor é aquele KY que a gente besunta antes de introduzir certos temas (risos).

Crédito da imagem: Priscila Prade

 

 

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