‘O governo brasileiro já poderia ter tomado as providências devidas’

fevereiro 26, 2022

Evandro Menezes de Carvalho, professor de Direito Internacional da FGV-RJ, elucida, em entrevista, questões referentes à invasão da Ucrânia pela Rússia e o impacto disso no mundo

Por volta das quatro da manhã da última quinta-feira (24), moradores de Kiev, capital da Ucrânia, foram despertados por clarões e estrondos. A cidade, assim como outras do país, era alvo dos ataques do exército russo, que iniciava a invasão daquele país. O conflito já dura três dias, já deixou inúmeros feridos e provocou o deslocamento de mais de 100 mil pessoas, segundo a ONU. A situação deixou o mundo em alerta, levando EUA, Reino Unido e França a anunciarem sanções à Rússia e outras nações a fazerem duras críticas ao presidente russo, Vladimir Putin. Para entendermos melhor a questão, NEW MAG conversou com Evandro Menezes de Carvalho, professor de Direito Internacional da Fundação Getúlio Vargas (FGV), no Rio de Janeiro, e coordenador do Núcleo de Estudos China-Brasil da FGV Direito Rio.

Cerca de 500 brasileiros vivem na Ucrânia. O Itamaraty recomendou a quem vive na capital, Kiev, permanecer por lá e àqueles que estão próximos às fronteiras saírem por conta e risco. O que o Direito faculta a esses brasileiros?

Há no Direito Internacional uma série de convenções que visam proteger a população civil dos efeitos da guerra. Os brasileiros que estão na Ucrânia, bem como toda a população civil daquele país, deveria estar protegida dos conflitos armados entre as forças da Rússia e as da Ucrânia. A Rússia ainda tem uma responsabilidade muito maior na observância do chamado direito humanitário por ser ela quem invadiu o território ucraniano e, sobretudo, por ser membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. Outra questão diz respeito à Diplomacia Brasileira, que deveria ter sido mais assertiva tanto em relação à Rússia quanto em relação à Ucrânia. Havia rumores de que a Rússia iria invadir a Ucrânia, isso foi alertado pelo presidente norte-americano (Joe Biden), e o Brasil poderia ter sido mais efetivo e se antecipado aos fatos, orientando os brasileiros e se preparando para uma eventual evacuação do território ucraniano. Não dá para ter uma postura cética diante de uma ameaça tão grave. O governo brasileiro já poderia ter tomado as providências devidas.

A primeira autoridade brasileira a se posicionar sobre o conflito foi o vice-presidente Hamilton Mourão. O presidente Jair Bolsonaro só se posicionou horas mais tarde. Como o senhor avalia o posicionamento brasileiro sobre o conflito?

Oficialmente, até o momento, o governo brasileiro não teve um posicionamento explícito sobre o conflito. A nossa Constituição Federal estabelece, em seu Artigo 4º, os princípios que regem as relações do Brasil com o mundo e este dispositivo deveria guiar a posição brasileira sobre o conflito. Pela Constituição, o Brasil deve se posicionar a favor da solução pacífica dos conflitos e em defesa da não intervenção externa em assuntos internos. Dito isto, o governo brasileiro deveria ser contra a invasão da Rússia e a falta de diálogo entre os dois países do conflito. Não devemos aceitar que um país invada outro. Este é um posicionamento que se coaduna com os nossos interesses nacionais de proteção de nosso território. Se o presidente Bolsonaro não se posicionou de maneira explícita, o (vice-presidente) Mourão foi quem se posicionou primeiro. Mas ele se excedeu ao defender o uso da força (no conflito). Temos então dois lados: de um, o silêncio do presidente e, do outro, o vice que, se teve um comportamento positivo ao criticar o conflito, extrapolou ao defender o uso da força contra a Rússia. Não encontramos o meio termo ainda que ele esteja no artigo 4º da Constituição.

A China fechou parceria econômica ilimitada com a Rússia. Ela defendeu a paz sem criticar o país-parceiro. Como o senhor vê esse posicionamento?

A China tem uma visão clássica das Relações Internacionais. Ela exerce sua diplomacia seguindo os princípios de coexistência pacífica estabelecidos na Conferência de Bandung, em 1955, quando ela se afasta do Bloco Comunista e se coloca ao lado dos países em desenvolvimento, sublinhando o respeito à soberania e à integridade territorial das nações. No conflito atual, ela não faz uma crítica explícita à Rússia, reitera princípios da soberania e de uma coexistência pacífica, mas faz suas ressalvas à política externa dos EUA. A relação entre China e EUA passa por um momento difícil. Se esse conflito tivesse acontecido alguns anos atrás, a reação da China talvez fosse mais crítica à Rússia. Hoje, ela não pode se dar ao luxo de perder um importante aliado em um mundo cada vez mais multipolar.

Biden anunciou que a Rússia estará impedida de realizar transações comerciais em dólar e em ienes (moeda japonesa). Até que ponto essas sanções são de fato intimidadoras?

Algum impacto haverá. Mas a Rússia tem uma boa quantidade de reservas e pode resistir por muito tempo. Por outro lado, esse conflito pode aproximar ainda mais a Rússia da China, que é hoje, depois dos EUA, a segunda maior economia do mundo. Pode ser que tais sanções possam ter alguns efeitos colaterais inesperados pela Otan, como fortalecer o papel do yuan nas relações entre China e Rússia. A China tem procurado internacionalizar a sua moeda de modo a ampliar as relações financeiras com outros países sem a intermediação do dólar. O yuan digital (a criptomoeda lançada este mês) é um passo nesta direção. Se isto ocorrer, esse conflito pode gerar alguma perda de poder para o Ocidente.

A Ucrânia é parceira da Otan, mas não sua integrante. A Europa deve ou não entrar no conflito?

Vejamos um cenário: a Estônia, Letônia e a Lituânia, países vizinhos da Rússia, são membros da Otan. Se Putin quisesse invadi-los, o custo seria muito maior. Por quê? O Artigo 5º do tratado da Otan estabelece que cada país-membro se compromete a defender o outro no caso de sofrerem uma agressão por parte de um terceiro estado. É o princípio da Legítima Defesa Coletiva. Sendo assim, caso um daqueles países fosse invadido, os Estados-membros da Otan teriam a obrigação jurídica de defendê-lo. Mas dado que a Ucrânia não é membro da Otan, qualquer apoio militar que ela viesse a receber de algum membro não teria sustentação legal sob o ponto de vista do direito internacional. E isto explica o porquê da queixa do presidente ucraniano (Volodymyr Zelensky) de que foi deixado à própria sorte. Os membros (da Otan) não podem mandar forças militares e, por isto, estão respondendo apenas com sanções econômicas. É por isto que o Putin, considerando razões de segurança nacional e outros interesses, resolveu lançar-se sobre a Ucrânia antes de ela se tornar membro da Otan. Há uma situação delicada para a Europa e, em particular, para a Otan: como lidar com a Rússia sem atropelar também o Direito Internacional?

Crédito da imagem: FGV/Divulgação

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