‘Nenhuma canção precisa ser cancelada’

outubro 13, 2023

Monica Salmaso conta detalhes da criação do show com Chico Buarque, que chegará às plataformas, e fala de cancelamento e novos talentos

Precisão e apuro técnico são (apenas) duas características que fazem de Monica Salmaso uma das maiores cantoras da atualidade. O gosto refinado, evidente a cada novo repertório, vem da infância. Quando criança, dublava grandes vozes femininas tendo como microfone um frasco de desodorante. Ironia do acaso, sua voz é das mais límpidas que temos no Brasil de hoje. Esse canto, burilado ao longo de anos, chegou aos corações de ouvidos exigentes como os de Edu Lobo e Dori Caymmi que a colocou no mesmo patamar de Elis, Gal, Nana e Bethânia. De Chico Buarque veio o convite para dividirem o show “Que tal um samba”, que estreou no fim de 2022 e cujo registro ao vivo será lnaçdo em novembro. Antes, a cantora, que tem se apresentado com frequência no Rio, volta a reencontrar o público carioca na terça (17), quando apresenta, no Teatro Riachuelo, o show “Alma lírica brasileira”, no qual debruça-se sobre pérolas de Dorival Caymmi (1914-2008), Vinicius de Moraes (1913-1980) e Tom Jobim (1927-1994). Nesta conversa com NEW MAG, por telefone, a cantora revela detalhes da criação do show com Chico, levanta corajosamente a voz contra a cultura do cancelamento que assola o país, joga luz sobre jovens compositores e revela o desejo de trabalhar com João Bosco.

Apuro e precisão são palavras que definem bem o teu canto e o resultado do teu trabalho. Isso foi algo que você buscou conscientemente ou intuitivamente?

u muito rígida internamente. Sempre fui responsável e rígida com o que diz respeito ao meu ofício. E isso é uma característica minha. Não sou uma pessoa relaxada. Desde que comecei na música, sempre tive oportunidade de trabalhar com músicos rigorosos. Meu início deu-se sendo acompanhada simplesmente pelo Paulo Bellinati, que é um solista incrível e um arranjador muito caprichoso. Não sou de fazer por fazer. Sempre trabalhei com gente muito boa e isso moldou a minha relação com a música. Não daria para ter sido de outro jeito.

A Gal Costa, quando criança, gostava de ouvir a voz reverberar numa panela. Você  demonstrou desde cedo que seria cantora?

Cantava tendo como microfone um frasco de desodorante (risos). Fazia isso sem a menor expectativa de que seria cantora, até porque não havia artistas na família. Sabia como uma pessoa se tornava dentista, jornalista, mas artista não fazia ideia. Quando criança, botava aqueles disquinhos coloridos (da Coleção Disquinho) na vitrola e ficava sozinha, dublando aquelas vozes e simulando que cantava. Aqueles discos ajudaram a moldar a pessoa que sou. Havia ali um vocabulário muito rico. Não tinha essa coisa tatibitati, de teletubbies…

Teu show com o pianista André Mehmari resulta no encontro entre dois artistas devotados à música. Com que outro instrumentista gostaria de fazer algo semelhante?

Nossa, com tanta gente! Cheguei hoje de manhã de Bogotá, onde me apresentei com o Guinga. O Dori (Caymmi) era um sonho que realizei. Fazer um trabalho com o Egberto Gismonti é algo que pretendo realizar. Com o João Bosco também, tanto pelo compositor quanto pelo grande instrumentista que ele é.

E como a Monica pessoa física recebe um elogio como o do Dori Caymmi, que te coloca no mesmo patamar de Elis, Gal, Nana e Bethânia?

Nem sei te falar… Sou muito pé no chão com essas coisas. Até porque me considero uma cantora independente, ainda que realize vez por outra algum trabalho com patrocínio. Todas essas vozes citadas por ele eram as que ouvia tendo o desodorante como microfone. Gosto de manter certo distanciamento desses meus grandes heróis e receber uma fala como esta do Dori é um troféu para mim. Gosto de ver que fiz um caminho na música que está afinado com as visões que eles têm desse ofício.

Em relação à preparação do show com o Chico o que foi mais difícil: escolher repertório ou ensaiar cara a cara com um dos nossos maiores compositores?

Ainda que eu tenha dedicado ao Chico um álbum (“Noites de gala, samba na rua”, de 2006), acho que essa aproximação se deu a partir da participação dele no Ô de casas. As participações eram gravadas, e falava para os convidados que, caso não gostassem do resultado, eles não seriam usados, e essa relação de confiança foi fundamental para o convite do Chico. Quando começamos a falar sobre o show, imaginava que faria o show de abertura para, em seguida, ele fazer o dele, mas não. Ele já tinha na cabeça que eu faria uma introdução e que voltaria para fazermos números juntos.

E como foi a escolha do repertório?

Ele me deu carta branca para escolher o que quisesse. Cheguei a fazer um listão que foi diminuindo. Sabia que meu tiro era curto, mas queria mostrar também que tenho um trabalho e uma relação com aquelas canções. E, para a abertura, tinha de fazer isso sem me alongar muito. Brincava que os fãs dele iriam atirar amendoim em mim (risos).

O show era aberto com “Todos juntos” que acabou tendo uma conotação política…

Fiz uma live com a Teresa Cristina toda com temas infantis e “Todos juntos” foi cantada. Diante do verso “Ao meu lado há um amigo que é preciso proteger” me dei conta de que ela tinha a ver com o momento que atravessávamos e foi um chororô danado. Ao apresentar meu repertório ao Chico, disse que queria cantar “Todos juntos” e ele perguntou se teria coragem. Tenho, respondi. Ao ver o resultado, o Vinicius França (empresário do Chico) disse que tínhamos a abertura do show e, na hora, pensei que poderia estar lascada (risos). A canção é uma porrada, mas uma porrada através do afeto.

Uma canção como “Com açúcar com afeto” deve ser cancelada ou pode ser atualizada como ocorreu com Beatriz?

No caso de “Beatriz” não houve uma atualização, mas uma melhoria (No verso “Será que é divina a vida da atriz”, vida foi trocada por sina).  Acho que nenhuma canção precisa ser cancelada, mas situada dentro de um contexto que justifique o fato de ela estar ali. No “Alma lírica”, por exemplo, canto “Maria Moita” (Carlos Lyra\Vinicius de Moraes), que tem os versos  “Meu pai dormia em cama\Minha mãe no pisador” e “Mulher que fala muito perde logo o seu amor” que são terríveis, veja você! Mas eu falo que ela está inserida num contexto crítico, inclusive. É preciso encontrar um jeito de fazer isso. Sou contra o cancelamento.

Já pensou em trocar palavras numa canção? A Bethânia faz isso…

Sou muito carola. Nem o gênero eu troco (risos).

Em entrevista ao NEW MAG, Simone disse que você a convidou para o “Ô de casas” e que ela amarelou. Pensa ainda em cantar com ela?

Eu vi e, recentemente, ela assistiu no Rio ao show em que homenageio a Elizeth (Cardoso). Nós nos abraçamos e disse para ela parar com aquilo de dizer que estava em falta comigo.

Ia ficar lindo vocês cantando “Canoa, canoa” (de Nelson Ângelo e Fernando Brant e gravada no LP “Face a face”)…

Era exatamente a que escolhi. O “Face a face” é um disco importantíssimo para mim. A Simone tem uma importância imensa na música brasileira.

Você já homenageou Chico, Vinicius e Paulo Cesar Pinheiro em discos magistrais. A qual nome mais recente dedicaria um projeto?

Acho que o Breno Ruiz tem uma assinatura musical muito própria, assim como o Thiago Amud. A questão não é só homenagear, mas mostrar isso que chamo de assinatura. Foi assim com o projeto em homenagem ao Guinga e ao Paulo Cesar Pinheiro (“Corpo de baile”, de 2014). Se eu pulverizasse aquelas canções no meu repertório, aquela assinatura tão grande se diluiria e não conseguiria dar a dimensão que ela tem.

C rédito da imagem: Lorena Dini

 

 

Posts recentes

Laços de união

Família de Glória Pires comparece em peso a desfile em São Paulo. E o motivo foi mais que especial. Vem saber

Com chave de ouro

Leandro Hassum apresenta espetáculo no qual conta histórias de família em encerramento de festival de humor no Rio