‘Minha vida pessoal não interessa a ninguém’

agosto 12, 2022

Ney Matogrosso fala de como suportou o isolamento, de pioneirismo e do que o leva a cantar com novos artistas

Há um termo no meio teatral usado para designar alguns atores: bicho de palco. Ney Matogrosso não é ator, mas um de nossos maiores (senão o maior) cantores, e o termo cai como luva em se tratando do artista que ele é. Ney está de volta aos palcos, seu habitat natural, e à música, vocação abraçada por ele há mais de 50 anos. Ele apresenta o show “Bloco na rua” neste sábado (13), no Qualistage, aonde volta em setembro devido aos ingressos para a apresentação estarem esgotados. No ano passado, completou 80 anos com “Nu com minha música”, álbum no qual empresta sua voz a autores de diferentes épocas como Pedro Luís  e o oitentão Caetano Veloso, de quem pescou a pérola que dá título ao novo trabalho. O trabalho é arrebatador  e confirma aquela que é uma de suas marcas: a de se apropriar das canções e surpreender os ouvintes com o resultado disso. “É o que todo intérprete deve fazer”, diz ele, por telefone, neste bate-papo com NEW MAG. Sim, é o que todo intérprete deveria fazer, mas que Ney Matogrosso faz de forma soberba.

Como foi para o bicho de palco que é você suportar esses dois anos de confinamento?

Foi horrível. Eu preciso de movimento, de ação física e, em razão dessa situação, não havia nada a fazer a não ser aceitar. Colocava no som alguns mantras e dançava pela casa. Eram mantras mais agitados e dançava até cansar.

Isso se deu no sítio ou no Rio?

No Rio. Eu fiquei no sítio os três primeiros meses do isolamento. Até que o inverno chegou – e lá faz muito frio – e decidi voltar ao Rio, onde fiquei o resto do tempo que durou o isolamento social.

Você completou, no ano passado, 80 anos, idade na qual outros grandes nomes da música chegam este ano. Houve dor ou delícia ao chegar a esse número?

Zero de dor, pelo contrário. Estou no lucro. Tenho ainda a possibilidade de cantar e de fazer meu trabalho. Está tudo certo! A idade nunca foi um problema para mim. Nunca teve um peso. Sei que chegará o dia em que a idade vai pesar, mas esse dia não chegou ainda.

Você tem o dom de se apropriar das canções e surpreender o público com o que faz delas…

É o que todo intérprete deve fazer.

Sim, e isso acontece com “Gita” (de Raul Seixas e Paulo Coelho), canção muito conhecida e que já teve muitas regravações, três delas por Maria Bethânia, por exemplo. Houve algum receio ao recriá-la?

Nenhum. Inclusive, qualquer outro intérprete pode cantar algo que eu tenha lançado ou gravado. Não tenho problema nenhum quanto a isso. O mesmo se deu com “Sua estupidez” (de Roberto e Erasmo Carlos), que eu queria cantar há muito tempo. O Marcello (Gonçalves) enviou um primeiro arranjo muito acelerado e perguntei o porquê daquela pressa toda.  Ele respondeu que era para eu poder dar o meu esporro. E quem disse que eu quero dar esporro com essa música? Quis cantá-la como se dissesse aquelas palavras ao pé do ouvido, como se chegasse para a pessoa e falasse: “não marca essa toca comigo”. Era esse o meu ponto de vista.

Essa suavidade também está em “Quase um segundo”, do Herbert Viana, que foi regravada por Cazuza (no álbum “Burguesia”), cantada por Simone com suavidade no show “Sou eu”, dirigido por você, e que agora é interpretada por você.

A interpretação do Cazuza sempre me impressionou. Há uma fragilidade ali, até porque ele estava frágil mesmo, gravando aquele que foi seu último disco. Quando decidi gravá-la, não quis fazer igual, mas quis o mesmo clima. Recomendei ao Ricardo (Silveira, responsável pelo arranjo) que ouvisse a gravação do Cazuza. Essa mesma fragilidade há também no “Unicórnio azul” (“Unicórnio”, de Silvio Rodriguez). Não era essa a intenção, mas foi a que prevaleceu. O  eu da música está frágil mesmo, por isso diz aquelas palavras. Dizem, inclusive, que é uma canção gay.

Nesses tempos em que tudo vai parar nas redes sociais, você consegue manter a sua privacidade ao longo de mais de 50 anos de carreira. É difícil se preservar?

Não. O artista que eu sou no palco é o oposto da pessoa que eu sou. No palco estou para ser visto. A minha vida pessoal não interessa a ninguém. Dos meus relacionamentos, acabei falando sobre o Cazuza e sobre o Marco (com quem Ney viveu por 12 anos) porque as circunstâncias da vida me levaram a isso. No mais, todas as pessoas que foram para a cama comigo podem ficar tranquilas, pois não terão seus nomes revelados por mim.

Você já gravou álbum com Pedro Luís e, recentemente, fez duetos com a Zabelê e com o Almério. Estar atento às novidades é algo orgânico ou é uma preocupação?

Eu sou muito aberto às novidades e às coisas que surgem na música. Não que eu fique procurando, mas acabam chegando até mim e algumas delas me interessam mais do que outras. Já gravei com artistas que nem conhecia, mas que topei porque a música escolhida me tocou.

Há hoje na cena musical cantores de timbre agudo e de muita atitude como o João Fênix, Liniker e Almério. Como você vê a consolidação desses artistas na cena musical?

Acho esse caminho muito natural. Da mesma forma que há também cantores trans na cena musical. Então, esse caminhar, essa evolução é natural para mim. Quando o Edson Cordeiro surgiu, teve gente na imprensa que decretou: “agora Ney Matogrosso está liquidado!”. Estou aí até hoje, e estamos todos fazendo nossos trabalhos. Isso não é algo que me ameace.

Não perguntei no sentido de ameaça, mas de pioneirismo mesmo, afinal você abriu caminho para todos esses artistas que estão aí…

É bacana você reconhecer isso porque alguns deles ficam putos quando são comparados comigo. E não tenho culpa se isso acontece. O acaso me jogou nesse caldeirão e fiz questão de segurar essa peteca. Fiz o que fiz e fui em frente.

Crédito da imagem: Marcelo Faustini

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