‘Lula é muito sedutor’

novembro 4, 2022

Antonio Pitanga fala dos desafios e das conquistas em mais de 60 anos de carreira, das lutas de hoje e de dirigir os filhos no cinema

Antonio Pitanga é um patrimônio vivo do país. Sua figura tornou-se pública a partir do Cinema Novo, movimento que ajudou a consolidar e no qual trabalhou com os mais importantes diretores. Na TV, atuou em inúmeras novelas, algumas delas em emissoras que nem mais existem e acompanhou de perto as transformações pelas quais a teledramaturgia passou. Aos 83 anos, Pitanga tem muito do que se orgulhar. Ao longo de mais de 60 anos de carreira, soube se impor e trabalhou com quem e no que quis. Tanto é que, ao contrário de muitos atores negros, só interpretou um escravo uma única vez. Outro motivo de orgulhos são os filhos, Camila e Rocco, que seguiram o pai na profissão. Os três voltam a trabalhar juntos no cinema, 39 anos depois de “Quilombo”, filme de Cacá Diegues. O reencontro se dará em “Malês”, no qual Pitanga vai dirigir os filhos pela primeira vez. “Criei meus filhos e nós nos criamos. Crescemos juntos”, comenta ele nesta entrevista, por telefone, ao NEW MAG. O ator relembra momentos marcantes da carreira e o que ainda é necessário alcançar no país.

Você já trabalhou com seus filhos em situações diferentes e, agora, irá dirigi-los pela primeira vez no filme “Malês”. O Pitanga diretor será austero como um pai ou mais emotivo? Esse encontro entre vocês demorou ou acontece no momento certo?

Na verdade, nós já havíamos feito o “Quilombo” (filme do Cacá Diegues). A Camila tinha uns 6 anos, e o Rocco, uns 3. Eles eram as crianças do quilombo. Quando me separei da Vera (Manhães), criei meus filhos e nós nos criamos. Eu os eduquei e fui por eles educado. Crescemos juntos. Dentro de casa nunca houve espaço para autoritarismo.  E essa mesma relação se dará no set. Será uma troca entre diretor e ator, uma troca entre colegas. É interessante que comecei a pensar nesse filme quando o Lula estava no seu primeiro mandato e vou concluí-lo em 2023, 20 anos depois, quando o Lula estará exercendo o seu terceiro mandato como presidente. Isso tem uma simbologia muito grande para mim.

Com a vitória do Lula, há chance de você voltar à política e de a Benedita (da Silva) ocupar um cargo na equipe ministerial?

Estou com 83 anos, e a Benedita, com 80. Ajudei a criar a Secretaria de Cultura, juntamente com o Sérgio Mamberti, o Paulo Betti e o Antonio Grassi. Achamos que o momento agora é o de deixar a política para os mais jovens. A Benedita tem um carinho imenso pelo Lula e ele por ela. Pode ser que ele consiga convencê-la a ocupar algum cargo, não sei. O Lula é muito sedutor e capaz de tudo.

Você surgiu numa época em que eram bem poucos os atores negros. Já viveu algum tipo de segregação no set de um filme ou num estúdio de TV?

Não, porque nunca permiti que isso acontecesse. Quando pedia trabalho numa TV ou no cinema, não perguntava se havia papel de escravo ou de negro. Perguntava simplesmente se havia algo para mim, um ator apto a fazer os mais variados papéis. Eu sempre soube me colocar. Tanto que, por isso, nunca fiz ponochanchada. O único escravo que interpretei foi na novela “Dona Beija” (exibida pela extinta TV Manchete em 1986), por ser um papel diferente e um personagem interessante.

A novela “A próxima vítima”, na qual você e Camila trabalharam, mostrou pela primeira vez uma família negra de classe média, com seus conflitos e idiossincrasias. Qual foi o preço pago por esse pioneirismo?

Eu jogava bola no Caxinguelê (no Horto) e, certa vez, o Sílvio de Abreu estava saindo da Globo, ali na Von Martius, e dei carona a ele. Na ocasião, eu estava na Manchete e ele me perguntou por que não voltava para a Globo. Porque não quero fazer escravo, respondi. E disse ainda que, quando tivesse oportunidade de viver um pai de família bem-sucedido, eu voltaria à Globo. Tempos depois, ele telefonou dizendo que essa oportunidade iria chegar.

E aí você voltou para a Globo…

Sim, mas, já que você falou em pioneirismo, a primazia não foi da Globo, mas da Excelcior. Em 1969, trabalhei na novela “Vidas em conflito”, que tinha uma família de classe média negra, da qual faziam parte o Zózimo Bulbul e a Jacira Sampaio (que, por anos, foi a Tia Nastácia do “Sítio do Pica-pau Amarelo”), entre outros atores. Agora, veja você quantos anos se passaram de 1969 a 1995, quando “A próxima vítima” foi ao ar.

Da novela “A cabana do Pai Tomaz”, em que o ator Sergio Cardoso precisou ter sua pele pintada para viver um negro, para cá, o ator negro saiu das cozinhas e das senzalas para o protagonismo de novelas e séries. No âmbito do entretenimento de massa, qual a barreira que ainda precisa ser derrubada?

Todas. Fui convidado para atuar na “Cabana do Pai Tomaz” e, quando soube que o Sergio Cardoso iria se pintar de preto e usar um negócio no nariz, declinei do convite. Outros atores negros toparam participar e cada um sabe onde o seu calo aperta. Na época, fiz uma campanha ferrenha contra a novela, e o Boni (José Bonifácio de Oliveira Sobrinho) me procurou para dizer que a TV Globo não era racista. Estamos no século XXI e longe ainda de uma democracia racial. Ainda existe um preconceito gritante, vide esse episódio com o Seu Jorge no Sul do país. Faltam ainda consciência, paridade salarial e uma série de outras coisas. Na época em que comecei, a população brasileira era de pouco mais de 60 milhões de habitantes e eram poucos os atores negros. Hoje, são 215 milhões de brasileiros e essa conta não fecha! Estou com 83 anos e continuo lutando pelas mesmas coisas que lutava quando tinha 16 anos. E não arreio a guarda. Estou firme!

No filme “Quando o carnaval chegar”, de Cacá Diegues, você teve oportunidade de contracenar com Chico Buarque, Nara Leão e Maria Bethânia. Conta uma passagem divertida dos bastidores das filmagens.

As filmagens eram uma comédia diária. Sempre alguém fazia uma pegadinha. O Chico era o mais tímido e a maneira que tínhamos de quebrá-lo era fazendo piadas ou com o futebol. Aquele elenco foi a junção de amigos. Éramos uma patota. Ninguém ali queria ser maior do que o outro. Cada um brilhava e tinha a consciência de que, num outro momento, seria escada para a Nara ou a Bethânia brilhar…

E Bethânia brilhou cantando “Baioque” onde, hoje, existe o Barra Shopping…

Aquilo era um areal! Na época nem existia Avenida das Américas. A estrada que tinha era de terra batida. Bethânia já era minha amiga da Bahia. Eu tinha feito o filme “A grande feira”, no qual fui o Chico Diabo, e o Caetano (Veloso) e o Rodrigo (irmão do cantor) ficaram meus fãs e me chamaram na casa deles. Foi quando conheci Dona Canô e a família.

Você teve oportunidade de trabalhar com os mais importantes diretores do Cinema Novo. Qual deles era o mais intuitivo e qual o mais metódico?

Glauber era o mais intuitivo e o mais genial. Joaquim (Pedro de Andrade) era o mais perfeccionista. Glauber e Cacá se conectavam. Cacá dirigia conversando com o ator. Nunca o vi dar um grito. O Ruy (Guerra) também tem uma emoção glauberiana. Eles eram também muito abertos ao que os atores traziam. Eu vinha das artes dramáticas e, em relação ao cinema, nossa formação veio dos cineclubes. Em relação aos Direitos Humanos, levei ao Cinema Novo conceitos do Malcom X (ativista norte-americano) e dos Panteras Negras (movimento negro dos EUA). Éramos jovens da mesma faixa etária. Saber ouvir foi muito importante para mim. Fez com que eu me tornasse o cara que sou hoje.

 

 

Posts recentes

Novo imortal

O escritor e ambientalista Ailton Krenak toma posse e torna-se o primeiro indígena na Academia Brasileira de Letras

Leitura saudável

A nutricionista e psicóloga Thaís Araújo lança livro no qual compartilha seu método eficaz para regular a saúde intestinal