‘Fui muito além do sonho que sonhei’

julho 22, 2022

O bailarino Thiago Soares fala, em entrevista, sobre a estreia como diretor de cinema, dos encontros com a rainha Elizabeth II e como será sua última grande turnê mundial

Quando começou seus primeiros passos de dança, numa escola no Méier, Zona Norte do Rio de Janeiro, Thiago Soares nem imaginava que um dia dançaria para a rainha Elizabeth II, conquistando sua simpatia, a ponto de a monarca ir ao palco cumprimentá-lo. “Nunca fui recebido por nenhum líder do Brasil”, lamenta ele, com toda a razão. Mas se ele não se abalou com as dificuldades enfrentadas no início da carreira, não vai ser isso que vai impedi-lo de continuar a brilhar como um dos maiores dançarinos do mundo. Não à toa, ele conquistou o posto de Primeiro Bailarino do Royal Ballet de Londres. No curta “Vermelho quimera”, recém-lançado no Festival de Cannes e prestes a estrear no Brasil, ele atua como diretor e ator. Sim, Thiago Soares segue se reinventando, sem nunca se distanciar da dança. Em conversa exclusiva com o NEW MAG, ele fala da vida, das dificuldades no início da carreira, da grata surpresa de ter chegado tão longe e anuncia que está se preparando para uma nova turnê pelo mundo que pode ser sua última.

Você teve uma infância simples, primeiramente em São Gonçalo e depois em Vila Isabel. Hoje, você é um dos principais dançarinos do mundo, com conquistas muito marcantes em sua carreira, inclusive já tendo dançado para a rainha Elizabeth II. O que isso significou na sua trajetória?

Foi incrível como pessoa. Eu tive a oportunidade de estar com ela algumas vezes, algumas com a imprensa junto, tirando fotos, mas outras não. Lembro da primeira vez em que estive com ela, não tinha imprensa nem fotógrafos, e passou um filme na minha cabeça. É meio surreal, da arte que me escolheu, da arte que eu escolhi, de alguma forma ter me levado tão longe. Sem dúvida, eu hoje me dou conta de que fui muito além do sonho que eu sonhei lá atrás. Eu sonhava alcançar coisas, mas, de uma forma muito bonita e muito mágica, isso foi muito além. Nessa primeira vez que estive com ela, eu pensei: Caramba, eu nunca fui recebido por nenhum líder do Brasil ou nada desse tipo e estou aqui com a rainha Elizabeth me perguntando de onde venho, qual a minha cidade. Essa minha jornada tem sido muito bonita. Óbvio que nem tudo são flores, é um trabalho lento, dolorido, frustrante, porque é muita dedicação para pouco prazer. Mas também quando dá certo, é extremamente satisfatório. Eu me sinto um privilegiado.

Quais foram as maiores dificuldades que você enfrentou até chegar onde está hoje? Alguma vez pensou em desistir? Se sim, o que o fez seguir adiante?

Quando comecei os meus treinamentos, lá no Centro de Dança Rio, no Méier, que foi uma escola fundamental nos meus primeiros treinamentos e na minha formação. Eventualmente, eu comecei a tentar entrar no mercado semi-profissional, onde eu fazia bicos e trabalhos que pagavam pouco. Alguns professores tentaram arrumar formas de eu ingressar num sistema mais profissional. E, ali, me lembro do meu pai falar: “beleza, você vai ficar dançando, mas você não consegue nem dinheiro para a passagem, nem se alimentar direito”. Era um momento em que eu me dei conta que, para mim, havia muito poucas oportunidades. Não era uma profissão em que você conseguia ingressar profissionalmente, trabalhar e ter um salário. Era tudo meio hobby. Naquele momento, tive dúvidas, passei um período muito difícil até para me alimentar, e meu pai me deu um chá de realidade. Mas aí, de novo, veio um maestro e disse que eu tinha que ir para fora buscar o meu máximo. Então, eu retraí e meti a cabeça mais fundo tentando ir além.

E teve o apoio da família?

A minha família sempre me apoiou com amor e carinho. Minha família não é de dança e entendeu sobre dança e teatro através de mim. Meu pai é uma pessoa incrível, mas extremamente formal e prático. Tudo o que é a parte mágica e complexa da arte de entender, para ele não é um idioma claro, então ele sempre me perguntou: “vem cá, vai viver de quê?” Eles me apoiaram com o que deu. Não venho de uma família que pôde investir nem dez reais em mim, nunca. Tive a comida no prato até meus dezesseis anos e, depois, era meio “e aí?” E quando começaram os “E aís” foi quando comecei a rebolar literalmente, dançando para não dançar.

Você já participou de filmes como “O Primeiro Bailarino”, dirigido por Felipe Braga, e também fez “Sylvia” e “Lago dos Cisnes”, ambos dirigidos por Ross MacGibbon. Esta é sua primeira experiência dirigindo um curta. Como foi esse desafio para você?

Não teve tanta pressão, porque esse projeto não começou para ser um produto audiovisual, mas para ser uma coreografia, um trabalho que, eventualmente, iria para o palco. Durante o processo, foi que a gente descobriu que ali precisava de uma lupa para poder observar os movimentos menores, as danças de olhos, mãos e pés que, num palco, precisam de um volume muito mais alto. Quando você está com a distância da plateia, os movimentos são maiores, têm um volume maior. E, nesse trabalho, naturalmente eu me dei conta de que estava lidando com coisas mais minuciosas, detalhes muito pequenos. E isso se traduziu para a gente de que precisava ser gravado. E quando eu me decidi, chamei o Oskar (Metsavaht), que é um grande amigo que já embarcou comigo em outros projetos, e mostrei para ele. Quando ele viu, falou que aquelas gravações já revelavam que se tratava de um filme, e não de dança para teatro. Eu o convidei e ele topou. A direção veio muito naturalmente, não teve uma pressão, ainda mais tendo esse apoio do Oskar.

E como foi dividir a direção com o Oskar Metsavaht, que é um empresário da moda?

Oskar tem um interesse muito específico por essa perspectiva tropical do Brasil, de como isso pode conversar de uma maneira diferente. Ele tem uma veia da moda muito forte, então ele é um cara extremamente ligado no que se vê bem, de questionar os padrões. E eu sempre achei isso tão interessante para o que eu faço, porque também me tira do meu lugar de conforto. O “Quimera” foi isso. Ele me perguntou o que eu estava fazendo e quando eu disse, ele quis ver o ensaio. Ter ele ali, com esse olhar, nessa direção criativa, olhando o projeto no todo, foi muito legal. Até quando a gente discorda, é saudável.

No filme, você contracena nu com a atriz Lana Rhodes. Foi tranquilo para você realizar essas cenas de nudez?

Quase nu. A ideia é essa, mas eu estou usando aquele famoso suporte que se chama tapa-sexo (risos). O propósito é justamente esse: uma cena de amor. A concepção coreográfica do “Quimera” sou eu nessa minha nova etapa, me tira daquele lugar do bailarino clássico. Nessa cena específica, em que estou contracenando nu, é um pas de deux na cama. É quase que ir ao extremo com essa história do passo de dois, como ele pode ser traduzido. Eu fiz isso a minha vida inteira e queria que esse encontro íntimo, desses dois personagens, fosse um pas de deux. Eles foram para a cama, OK, mas quantos filmes a gente vê que, chega o momento, e o casal vai para a cama. Eu queria que a narrativa dessa relação fosse um pas de deux, uma dança, onde eles estão na cama e nus.

Você veio do street dance e chegou ao balé clássico. Mas recentemente você fez um espetáculo em que revisitou esse estilo. Como foi voltar às origens?

Esse espetáculo, o “Roots”, eu fiz porque o coreógrafo, que se chama Hugo Alexandre, foi o responsável por me ingressar no balé. Ele foi o cara que, lá em Vila Isabel, quando eu era dançarino de hip-hop, ainda novinho, ele me falou que eu tinha muita limpeza na minha dança e que eu deveria fazer balé e jazz. Eu ainda fiquei pensando um tempo, mas decidi ir e descobri ali a minha verdadeira vocação. Esse cara é um grande amigo que seguiu uma carreira de coreógrafo de danças urbanas. Encontrei com ele anos depois e ele me disse que queria fazer uma coisa para mim, algo que me tirasse um pouco desse lugar e que me aproximasse do meu público daqui e das minhas origens. E aí foi muito legal, a gente ficou dois anos rodando com esse espetáculo, que foi muito interessante porque mexia comigo, no meu passado. E justamente agora eu me reencontrei com o Hugo, que me disse que estava faltando o nosso “terceiro ato”. O primeiro foi quando ele me engajou na dança, o segundo foi o “Roots” e agora está faltado uma conclusão. Eu topei e estamos preparando uma turnê. Está sendo muito especial poder dialogar com ele de novo e contar um terceiro ato mesmo, porque está vindo aí uma coisa completamente diferente.

E o nome do novo espetáculo será esse, Terceiro Ato?

Olha, eu acho que vai ser. Não vou afirmar aqui, mas provavelmente esta será minha última turnê. É óbvio que vou continuar dançando, lançando projetos, tem coisas que eu ainda quero fazer, projetos televisivos. Mas como turnê internacional, dessas que são cansativas e que levam seis meses, deve ser a última. E aí, quando a gente bota esse peso, essa coisa do terceiro ato é perfeita, porque a maioria das obras tem três atos, e o terceiro é o último. Acho que, de alguma maneira, fica a deixa de que a gente pode bater o martelo com esse nome.

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