‘Aldeíde faria tudo para estar na Farofa da Gkay’

dezembro 10, 2022

Lilia Cabral fala do respeito aos colegas, do aprendizado com a filha e do pânico pela perda da mãe

Lília Cabral é não somente uma das maiores atrizes da sua geração como está entre as grandes damas na arte de interpretar. Até chegar a esse patamar, o caminho foi trilhado com determinação (para usar uma palavra dela própria) e atenção. Lília sempre percebeu o potencial de cada papel e, na TV, alçou belos voos justamente por isso. Dois exemplos são a Aldeíde Candeias de “Vale tudo”, mulher cujo sonho era ser famosa, e a beata Amorzinho de “Tieta”. A cada novo trabalho, a atriz disse a que veio e credita parte dessa conquista aos autores com os quais trabalhou. Lilia é, além de grata, generosa. E volta aos palcos em “A lista”, de Gustavo Pinheiro na qual contracena pela primeira vez com a filha, Giulia Bertoli. Assistida por mais de 30 mil espectadores em São Paulo, a montagem dirigida por Guilherme Piva estreia, em janeiro, no Rio de Janeiro. Nesta entrevista, por telefone, ao NEW MAG, Lilia fala do encontro com Giulia, sobre o pânico provocado pela perda da mãe e do respeito por colegas com os quais discorda.  “Respeito os atores e a opinião deles”, defende, sem se colocar, com isso, em cima do muro.

Na peça, você e Giulia são vizinhas, de diferentes gerações, com temperamentos fortes e cujas afinidades vão aparecendo aos poucos. O que foi mais difícil de suportar durante o isolamento social?

Pouco antes da pandemia, minha mãe veio a falecer. Isso fez com que me sentisse como uma árvore da qual cortam as raízes e ela sobra oca. É como se eu não tivesse mais uma história.  Desenvolvi, com isso, a síndrome do pânico e, quando a pandemia começou, o pânico se instaurou novamente. Toda aquela ansiedade que conheci quando enfrentei a crise voltou com tudo, e a ansiedade é capaz de promover coisas muito negativas. Essa experiência da pandemia fez com que desenvolvêssemos um novo olhar sobre as coisas. Quem não se reinventou no próprio trabalho, foi levado a desenvolver outras coisas. Num primeiro momento, a gente se propôs a fazer coisas que nunca teve tempo: ah, vou ler tudo o que ainda não consegui . Essa disposição dura alguns meses, OK, mas se dedicar a isso durante dois anos não dá! Nesse sentido, o trabalho me ajudou muito.

Quando Giulia decidiu ser atriz, imagino que tenha dado a ela alguns conselhos. Desde que vocês passaram a contracenar, há algo que tenha aprendido com ela?

A Giulia me ensina algo todos os dias. Uma coisa que aprendi com a (atriz) Cleyde Yácones foi que a gente não pode achar que já sabe tudo. O ator que se cristaliza fica técnico, e a vida não é técnica.  A Giulia tem o frescor de quem está começando e não traz os vícios e as neuras de quem já tem anos de carreira. Os colegas comentam que, de tão à vontade, parece que estamos em casa e de certa forma estamos. Ela é completamente espontânea e muito determinada e tento segui-la nisso.

Personagens como a Amorzinho, de “Tieta”, e a Aldeíde, de “Vale tudo”, começaram pequenas e cresceram no avançar das tramas. Isso foi algo intuitivo ou foi racionalmente pensado?

Já na primeira cena da Aldeíde, ela roubava papel higiênico da firma onde trabalhava. Olha só que prato cheio para um ator! Percebi ali um colorido que aquela personagem poderia ganhar e fui em frente. O crescimento dessas personagens só foi possível porque tive a sorte de trabalhar com autores muito generosos. Se não fosse pela percepção deles, talvez as personagens não tivessem crescido. Sempre fui esforçada, determinada, mas tive grandes mestres que me ajudaram.

Um deles foi o Aguinaldo Silva, autor de muitas novelas nas quais você trabalhou, a começar por Vale tudo…

Ele ajudou o Gilberto (Braga) a escrever a novela. Era ele quem escrevia as cenas da Aldeíde e as do núcleo dela (personagens de classe média que moravam no Catete).

Ele te ajudou muito também em Tieta, não?

Veja você: éramos Rosane Gofman (Cinira) e eu trabalhando diretamente com essa grande atriz que é a Joana Fomm (Perpétua). Ali teve também o olhar do (diretor) Paulo Ubiratan que nos disse: quero vocês coladas nela (Joana). O Aguinaldo não é somente generoso, mas parceiro dos atores. E, por alguns deles, tem grande admiração. Lembro de, nas nossas conversas, ele falar da Eva Wilma, da Arlete Salles… Ele é muito atento e comenta sobre tudo, inclusive sobre os equívocos: “olha, isso não funcionou”. Foi o autor com quem mais trabalhei.

Aldeíde era uma mulher cujo sonho era ser famosa. Nesses tempos de redes sociais, Tik Tok, influenciadores, ela seria descolada ou estaria deslocada?

A Aldeíde faria de tudo para estar na Farofa da Gkay, mas de TUDO (risos). “Vale tudo” era uma obra-prima. O Gilberto (Braga) faz muita falta.

A Marta de “Páginas da vida” era politicamente incorreta e expunha isso abertamente. Na época ela causou certo estranhamento, mas, de lá para cá, mulheres como ela são cada vez mais comuns…

Você sabe que já naquela época muitas pessoas concordavam com ela? Algumas senhoras me abordavam dizendo que ela tinha razão, que estava certa em ser como era. Ouvi de muitas mulheres que entregariam a neta (Clara, que nasceu com síndrome de down) para adoção. O Maneco (Manoel Carlos) quando precisa abordar uma questão, vai fundo e escreve com muita convicção, por isso é o grande autor que ele é. Lembro de uma cena da Marta que tinha seis páginas de puras aberrações. Eram coisas nas quais ela acreditava. Esse tipo de pensamento sempre existiu, mas era velado. A grande diferença é que, de lá para cá, deixou de ser velado.

Você trabalhou com Regina Duarte no teatro, em Miss Banana, e em várias novelas. Como avalia as escolhas ideológicas feitas por ela?

Essa é uma questão muito delicada… Não concordo com a Regina, mas respeito os atores e a opinião deles. O que aconteceu nos últimos quatro anos foi muito sofrido para a Cultura e para a classe artística como um todo. Não critico meus colegas, da mesma forma que não me sinto à vontade para falar abertamente de uma colega com quem posso voltar a trabalhar. Minha autoridade está no meu pensamento e na minha postura. Quem for me assistir saberá o que penso e qual a minha postura. Com o que não concordo não defendo. Defendo aquilo no que acredito.

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