‘A sociedade não se incomoda’

fevereiro 4, 2022

Yvonne Bezerra de Mello fala sobre o assassinato do jovem congolês no Rio e lamenta que parte da sociedade ainda viva em uma bolha

Fundadora e coordenadora executiva do Projeto Uerê, Yvonne Bezerra de Mello luta há muitos anos pelos direitos da população menos favorecida, com parte substancial dela vivendo em situação de rua no país. Muito antes de seu nome ganhar destaque no noticiário, quando, em 1993, gritou contra a chacina de crianças na Candelária, Yvonne já levava a educação a crianças e jovens moradores de rua. Em entrevista à NEW MAG, ela desabafou sobre o assassinato do jovem congolês Moïse Kabamgabe, de 24 anos, agredido até a morte no quiosque onde trabalhava na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio.

Como a senhora vê esse acontecimento?

O Brasil tem um linchamento por dia. O linchamento aqui é uma prática muito comum. Nas comunidades, muitas pessoas morrem assim, amaradas. Só que, nos últimos anos, nesses últimos momentos, há um discurso de ódio que faz com que a população se ache dona da verdade e queira ser ela a justiceira. Eu vejo isso em todas as classes, vejo isso em discussões onde você não está fazendo nada e o cara te agride, no trânsito. O caso do Moïse é um caso típico. Como disse um dos assassinos dele: “eu quis extravasar a minha revolta.” Isso é uma coisa muito importante, ele ter dito isso. Nos faz entender que, aqui no Brasil, na maioria das vezes, as mortes são por motivos muito fúteis.

E como a senhora vê o posicionamento da sociedade?

A sociedade não se incomoda. Num primeiro momento, vê o rapaz morto ensanguentado, vê o menino amarrado no poste com a orelha cortada, vê as crianças de rua com as mãos e os pés queimados, vê o assassinato da Candelária. Isso é uma coisa que passa em poucos segundos.

Por que essa indignação não perdura?

Porque a sociedade não sai da sua bolha. A sociedade que se diz educada tem uma bolha e ela não quer sair dela. Então, esses linchamentos, essas mortes, na cabeça dessas pessoas, elas são justificáveis, porque ali na Barra da Tijuca, as pessoas passavam vendo o rapaz morto e ninguém parou nem pra mandar chamar uma ambulância ou a polícia. É uma coisa incrível o que está acontecendo no Brasil e isso é movido por um discurso de ódio nas mídias todos os dias. A Justiça não funciona, a Justiça é cara, a Justiça é morosa, então, se o camarada está me incomodando, eu vou lá e mato, amarro as mãos e os pés e dou paulada. Ontem, passei em Copacabana e tinha um rapaz dormindo na rua e uns garotões indo à praia. Passaram, voltaram e chutaram o rapaz. Chutaram o rapaz! Aí eu dei a volta com o meu carro e perguntei a ele o que estava acontecendo. Ele me disse: “dona, eu sou espancado todos os dias”. Quer dizer, é um ódio latente numa sociedade onde existe uma desconstrução do ser humano, no coletivo.

A sociedade perdeu o senso de coletividade?

O coletivo não está existindo mais. Sou eu, eu e mais eu, e se o cara na rua me incomoda, em vez de resolver o que fazer com aquilo ou pressionar as autoridades pra fazerem alguma coisa, eu vou lá e chuto. E se eu estou com raiva do mundo, eu vou lá e mato a paulada uma pessoa. Entendeu? Pra mim, é isso o que está acontecendo.

O que pode ser feito, na sua opinião?

Nós temos que fazer com que esses políticos trabalhem em prol da sociedade e temos que acabar com esse discurso de ódio. Isso tem que acabar e só nós podemos fazer isso, nós e vocês, jornalistas. Eu com as minhas declarações, muita gente vai ouvir e podem não gostar, vão me xingar, como sempre me xingam quando eu tento defender alguém que não é da bolha. Nós temos que fazer isso, vamos fazendo, não vejo outro jeito. Tomara que faça algum efeito, porque eu não me incomodo de ser xingada. Ninguém vai me bater. Podem me ameaçar de morte, como me ameaçaram no caso do menino do poste (um menor foi amarrado num poste, no Flamengo, em 2004), que eu tive que sair do país, senão iam me matar mesmo.

MAIS LIDAS

Posts recentes

Nada de podre

Personalidades prestigiam o musical “Alguma coisa podre”, que aporta no Rio após ser aclamado em São Paulo

Ele tem a força

O desenhista norte-americano John Romita Jr, da Marvel Comics, volta ao Brasil como grande estrela da CCXP24

Ele vai fundo

Túlio Starling fala daquele que será seu primeiro protagonista na TV e das séries que estrelará este ano