‘Nas primeiras tentativas chorava’

julho 24, 2024

Ludmilla Bauerfeldt arrebata público em tríduo de Puccini e mostra já ser uma das grandes vozes líricas brasileiras

Ludmilla Bauerfeldt tinha 22 anos quando ouviu de Sergio Lavor, seu professor no Conservatório Brasileiro de Música, uma sentença que mudaria sua vida. “Você é uma cantora lírica”, decretou o experiente cantor à então atriz. A julgar pela ovação que irrompe no Theatro Municipal ao fim de “Suor Angelica”, uma das operetas de Puccini (1858-1924) que integram “Il Trittico”, espetáculo com que Municipal celebra seus 115 anos, Lavor tinha mesmo razão. Ludmilla Bauerfeldt é hoje, uma das cantoras líricas mais incensadas da atualidade.

Interpretar a freira que tem sua quietude perturbada pela notícia da morte do filho nunca passou pela cabeça da artista. Ela já havia dado, em apresentações, voz a outras heroínas do autor como Mimi ou Musetta, ambas de “La bohème”.  Mas “Suor Angelica” era algo impensável. Feito o convite, um fato precisou ser transposto para a intérprete chegar à dor da personagem. Ludmilla concilia a carreira com os cuidados com Lorenzo, seu primeiro filho, de 2 anos e 4 meses.

– Meu primeiro passo na preparação foi tirar de cima do piano todas as fotos do Lorenzo – revela ela, reconhecendo que o trajeto foi árduo: – Nas primeiras tentativas de cantar eu chorava e chorava… Até que consegui aliar essa aproximação da personagem do distanciamento daquela realidade. Quando estava sabendo as árias de cor, vi que era o momento de ir para o palco.

E a bagagem de atriz foi fundamental para Ludmilla apropriar-se da vida daquela mulher. A récita é curta, mas plena de carga dramática. E Ludmilla chega a ficar sozinha em cena longos minutos, como ela ressalta:

– Suor Angelica é uma personagem muito visceral. A dor dela vem antes do canto e de tudo mais. Começo num registro mais grave e vou crescendo. Finda a récita, o corpo cobra seu preço e saio do palco dolorida, mas vale a pena todo o esforço.

Cena de “Suor Angelica”, uma das operetas de “Il Trittico”, de Puccini

E o contato com a dor não está somente no âmbito físico. A personagem é afastada do filho pequeno e segregada ao claustro por ser considerada inadequada por sua família, situação que permeia as vidas de muitas outras mulheres. A questão levou a cantora a se (re)conectar com as mulheres da sua família que a precederam.

– A dor é visceral e também ancestral. E, através desse papel, pude me conectar com minha própria ancestralidade, com as dores enfrentadas pela minha avó, pela minha mãe e pelas minhas tias. São mulheres que, ao longo dos séculos, precisaram lidar com diferentes perdas: a de filhos, a de relacionamentos, sem falar na da própria individualidade.

E o resultado de tanto labor é reconhecido pelo público que tem lotado o Municipal. Ao fim de cada récita, as palmas misturam-se a gritos de “Brava!” numa algazarra legítima e merecida.

E para encarar o rojão, Ludmilla toma uma série de cuidados. Um deles é o de se alimentar muito bem horas antes de cantar. Na estreia, por exemplo, ela encarou um café da manhã reforçado e não abriu mais a boca ao longo do dia. Sim, outro cuidado é o de poupar a voz nos dias de récita, o que, convenhamos, fica um pouco difícil na lida com o filho pequeno…

– O Lorenzo praticamente nasceu no Municipal. Lembro que, nos ensaios da “Traviatta”, estava ainda amamentando e o levava comigo. Esse é o primeiro trabalho com o qual me envolvi sem levá-lo comigo. O pai assume os cuidados para eu poder trabalhar – entrega ela.

E é bom constatar que, um século depois, uma mãe precisa afastar-se do filho para… exercer seu ofício. E o de Ludmilla Bauerfeldt é sublime. Bendito seja Sérgio Lavor.

Crédito das imagens: Filipe Aguiar

Ludmilla fica sozinha em cena e ocupa todo o palco com sua voz

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