‘O cinema não vai desaparecer nunca’

abril 28, 2023

Lucy Barreto, cuja produtora completa 60 anos, fala da luta de fazer cinema no Brasil, da parceria com o marido, Luiz Carlos, e relembra Glauber Rocha

Se o cinema brasileiro tem hoje a diversidade como uma de suas marcas, isso se deve ao pioneirismo de um casal: Luiz Carlos e Lucy Barreto estavam juntos há dez anos quando, em 1963, deixaram suas carreiras no jornalismo e na música em prol de um sonho: fazer cinema. Criaram a LC Barreto, que possibilitou que grandes obras-primas chegassem às telas, de títulos do Cinema Novo a produções recentes. A paixão pela sétima arte foi passada aos filhos.  Paula herdou o talento para a produção; Bruno e Fábio (1957-2019) seguiram os mestres com os quais conviveram e tornaram-se cineastas de prestígio internacional. A LC enfrentou duas décadas de ditadura, diferentes planos econômicos e, mais recentemente, uma pandemia. Passou por tudo incólume e chega aos 60 anos com excelentes serviços prestados à Cultura. O ano parece propício às efemérides, e o casal completará 70 anos de parceria. “Não somos nada parecidos (…). Temos esse sonho comum: o cinema”, opina Lucy nesta entrevista, por telefone, ao NEW MAG. Esse sonho levou milhares de brasileiros à sala escura. E a sonharem com um país melhor. E, como no poema, “se assim sonharam, assim o fizeram”. Que venham novos sonhos!

Nesses 60 anos da produtora, qual a situação mais disparatada que você e Luiz Carlos precisaram resolver?

Nada se compara à situação recente do país. A LC Barreto foi criada em julho de 1963 e, nesses anos todos, enfrentamos percalços como uma ditadura militar e diferentes planos econômicos. Mas, por incrível que pareça, o melhor período atravessado pelo nosso cinema foi nos anos 1970. Tudo porque, apesar dos pesares, tínhamos um ministro, o (João Paulo dos) Reis Velloso (do Planejamento), que era cinéfilo e gostava do nosso cinema. Naquela época, as produções brasileiras tinham 42% do mercado de salas e isso nunca mais se repetiu. É importante o país despertar para o fato de que o cinema é uma indústria e que, através do cinema, o mundo toma conhecimento da cultura de um país.

O que foi mais difícil de enfrentar: o fim da Embrafilme, no governo Collor, ou os últimos quatro anos?

Os últimos quatro anos, sem dúvida. A reação da classe à Era Collor suscitou a criação da Lei do Audiovisual, que até então não existia. Depois de um hiato sem produções, em meados dos anos 1990, tivemos produções como a “Carlota” (Joaquina, de Carla Camurati, de 1995) e “O quatrilho” (de Fábio Barreto, de 1996). Com a lei, houve toda uma movimentação da classe, sobretudo do pessoal do Cinema Novo, que acabou culminando na criação da Ancine.

Quando Bruno e Fábio decidiram enveredar pelo cinema, essa escolha foi vista por você como um caminho natural ou a viu com preocupação?

Vi as escolhas como um caminho natural. O cinema sempre fez parte da minha vida, desde a infância em Minas (Lucy nasceu em Uberlândia). O cinema e a música clássica. No Rio, moramos na Rua 19 de Fevereiro (em Botafogo, Zona Sul da cidade), numa casa muito frequentada pelo pessoal do Cinema Novo. Ali foi abrigada a primeira moviola da cidade e muitos filmes foram montados nela. Foi lá onde o Ruy (Guerra) montou “Os fuzis” e o (Arnaldo) Jabor, “O circo”. E os meninos conviveram com esses criadores desde muito cedo. Glauber morou conosco durante um ano e, na moviola, ele montou “Barravento”.

Como vê o fato de uma sala tradicional, como o Roxy, virar uma casa de espetáculos?

Acho que é a melhor solução diante do risco de aquele espaço ser descaracterizado e virar outra coisa que não um equipamento cultural. Acho que o cinema não vai desparecer nunca. Ir a uma sala é uma experimentação única, a de assistir a algo juntamente com o público, isso te possibilita compartilhar das reações ao que é exibido. Sem falar da delícia que é namorar no cinema. Luiz Carlos e eu já namoramos muito, sobretudo no antigo Cinema Star. Namorar no cinema é algo único.

Muitas produções já são pensadas para o streaming, com algumas sendo lançadas em festivais de cinema. O futuro do cinema está no streaming?

Acho que o futuro vai possibilitar que o cinema tenha diversos meios de exposição, seja através do streaming ou nas salas de cinema. Um não elimina o outro. O isolamento provocado pela pandemia fomentou a demanda pelo streaming, mas, nos EUA, houve no pós-pandemia uma recuperação significativa das salas de exibição. Tudo bem que lá a indústria do cinema é muito forte. Na China, a indústria é fortíssima e, na Índia, é um dos mercados mais fortes. Lá, você pode ir ao cinema às oito da manhã. No mundo, o chamado setor criativo está atrás somente dos setores de Armamentos e do Aeronáutico. O Brasil, que tem hoje um cinema tão diverso e criativo, precisa atentar para a força dessa indústria. Vou fazer 90 anos em maio e sigo esperançosa.

Você já trabalhou com importantes cineastas de diferentes gerações, todos talentosos. Glauber era o mais irrequieto? Qual era o mais sereno?

Glauber era um sujeito à parte, único no que fazia. Como criador e pensador, não pode ser comparado a nada e a ninguém. Além de devotado ao cinema, adorava ópera e fomos algumas vezes ao Municipal. Foi um privilégio ter convivido com ele. Agora, o mais sereno certamente é o Cacá Diegues. Trabalhamos juntos em “Bye,bye Brasil” (1979) e ele foi uma pessoa muito tranquila de lidar.

Você e Luiz Carlos vão completar 70 anos de união. Qual o segredo para manter uma parceria tão longeva?

Não sei (risos). A gente se gosta muito. Não somos nada parecidos, o oposto um do outro seguramente. Temos esse sonho em comum: o cinema, que continua sendo nosso projeto de vida.

No filme “Tati, a garota”, do Bruno, a personagem da Dina Sfat vive o dilema de conciliar o trabalho com a criação da filha pequena. Qual foi o principal dilema vivido pela Lucy como mulher?

Não sei se saberia responder (Lucy fica pensativa). Você me fez pensar em algo sobre o que nunca falei. Estudei piano dos 4 aos 18 anos. Fui da Escola Nacional de Música e, mais tarde, fui para o Conservatório de Paris. O estudo do piano te exige muito e, num dado momento, me dei conta de que precisaria de um tempo maior do que o dos meus colegas para chegar a um resultado satisfatório. Conversei com meu professor, que me disse que eu tinha muito sentimento musical, mas que não tinha boas mãos. De fato, minhas juntas são largas. Ali, tomei uma decisão: se não poderia ser a melhor, daria aulas de piano.

Mas não demorou a trabalhar com cinema…

Tempos depois conheci o Luiz Carlos e fui trabalhar com cinema. Ele tem um lado mais político e eu, um senso prático que me leva a querer resolver as coisas. Mas a música me faz um bem até hoje. Vou aos festivais na Europa, como o de Avignon (na França) e o de Bayreuth (na Alemanha). Não abro mão desse prazer. Todas as pessoas têm dois lados e precisamos descobrir qual deles nos leva a viver.

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