No palco, sobre um tapete, uma poltrona e uma mesa de apoio. São objetos mais que suficientes para uma das mais talentosas atrizes de sua geração dizer a que veio. A atriz é Ana Beatriz Nogueira, e o espetáculo em questão é “Um dia a menos”, adaptado do conto homônimo de Clarice Lispector (1920-1977)e publicado postumamente em “A bela e a fera”. Sozinha em cena, ela mostra, a cada sessão, a grande atriz que se tornou desde que foi revelada, em meados dos anos 1980, no filme “Vera”, de Sergio Toledo. No início da carreira, Ana teve o privilégio de, ao longo de dez anos, dedicar-se somente ao cinema e ao teatro. Com o Plano Collor, a situação mudou e a atriz passou a dar as caras na TV, veículo que possibilitou ao Brasil conhecer seu trabalho, ao qual se dedica com afinco ao longo de 37 anos. Durante a pandemia, envolveu-se com apresentações teatrais remotas, através das quais chegou a diferentes rincões do país. Apaixonada por música, pretende se dedicar ainda mais à direção de shows. “Quando dirijo um show, não me sinto trabalhando”, explica ela, por telefone, nesta entrevista ao NEW MAG na qual fala dos desafios encarados na pandemia e dos planos para o futuro.
Em “Um dia a menos” você vive Margarida Flores, uma mulher para quem a vida é uma sucessão de acontecimentos banais. A peça estreou antes da pandemia e, durante o isolamento, fomos todos Margaridas. Com o que foi mais difícil de lidar no primeiro ano da pandemia?
Minha primeira reação foi a do choque, provocada pela descoberta da gravidade do que estava acontecendo. A primeira coisa era entender a gravidade daquele assunto e nos protegermos. Fui para uma casinha que tenho na Serra e fiquei lá os primeiros meses da pandemia. No primeiro mês, fiquei parada, sem saber muito bem o que fazer. Os amigos foram indo embora, as pessoas estavam sofrendo e a vontade de fazer teatro foi ganhando força novamente. E fui correndo para o online, que era a maneira de se fazer teatro com a devida proteção. Fazer teatro passou a ser uma atividade caseira à qual fui me adaptando com facilidade.
Sentada numa poltrona, tendo o apoio de uma pequena mesa, é comovente como você trabalha as intenções e as pausas. O simples é de fato o mais difícil de se alcançar?
Quando a gente fala do simples, falamos de maneira muito genérica. Vou fazer um jantar simples. Na hora de declarar Imposto de Renda, há a opção pelo Simples. Quando se trata de algo artístico, chegar ao simples dá um trabalho imenso. E o solo tornou-se a maneira possível de fazer teatro em razão da pandemia. Com uma equipe pequena, o ator acaba por desempenhar outras funções, não por ambição, mas por necessidade. Essa temporada agora em São Paulo foi realizada sem nenhum apoio. O cartaz da peça não traz a logo de nenhuma empresa. A empreitada custa X e o risco é meu. Vou a São Paulo de carro e levo comigo duas pessoas e o cenário. E, lá, meu carro é usado para os deslocamentos da equipe para o teatro. Antigamente havia permutas com hotel, companhia aérea, mas isso acabou.
Durante a pandemia você se engajou em iniciativas como Teatro Já e Teatro Sem Bolso, fazendo teatro de casa, inclusive. Dois anos depois, o que foi mais gratificante por ter se envolvido nessas iniciativas?
Foram muitos os fatos gratificantes. Um deles foi a possibilidade de se produzir textos inéditos. A outra foi poder fazer com que os atores vivenciassem experiências inéditas em razão do que estava acontecendo. Procurei o Paulo Betti e o Marcelo Serrado, que toparam de cara, e outros amigos foram se envolvendo com a proposta. A Maitê (Proença) escreveu uma peça linda (“O pior de mim”, indicada ao Prêmio Cesgranrio de Teatro). A maioria eram solos, mas houve também peças com dois atores, que podiam contracenar de forma segura, como a Lília (Cabral) e a Giulia (atrizes de “A lista”, de Gustavo Pinheiro). E todas foram apresentadas de forma remota, com um único espectador na plateia, o mais perto do que podíamos chegar do fazer teatral. O mais gratificante talvez tenha sido isso de chegar à casa das pessoas. Houve uma situação em que duas senhoras no Tocantins assistiram a uma das peças e isso só foi possível por ser feito de forma remota.
A prisão e o afastamento de José Dumont de ”Todas as flores” foi um choque para o elenco, com o qual ele tinha uma relação afetuosa. O que foi mais difícil para vocês nesse episódio?
O Zé era sempre na dele. Fizemos cinema juntos, nos adorávamos e lidar com esse fato foi muito difícil. Quando recebemos a notícia foi um grande susto. Fiquei muito chocada e triste. Que pena que aquele homem, um ator que tanto colaborou para o nosso cinema, seja desse jeito. O comportamento humano tem suas peculiaridades e há sintomas que precisam ser tratados. Em qualquer lugar do mundo, não importa onde, precisam ser tratados.
Você já teve oportunidade de dirigir Zélia Duncan, no show “Pelo sabor do gesto’, e Leila Pinheiro no show “Extravios”. Pensa em dar mais vazão à Ana Beatriz diretora e em trabalhar mais com música?
Como diretora, não consigo fazer algo sob encomenda. Não adianta chegar para mim e dizer “Aqui está o elenco, você vai ganhar tanto e podem começar a ensaiar”. Eu preciso ter um envolvimento emocional com aquele projeto e disso vem a minha vontade de realizá-lo. Como sou apaixonada por música, quando dirijo um show não me sinto trabalhando. Pelo contrário, é um momento em que tiro férias da atriz. No teatro, vou dirigir “Glauce”, cujo texto foi encomendado ao Leonardo Netto pela Françoise Forton (1957-2022), que queria homenagear a Glauce Rocha. O Barata (produtor teatral e viúvo da atriz) vai realizar esse projeto e me convidou. Nesse caso, me deixei envolver pelo afeto. Sou uma diretora amadora e vou ser sempre!
Você teve oportunidade de viver no teatro a Mariazinha, de “Fala baixo se não eu grito”, imortalizada por Marília Pêra. Qual o principal risco de reavivar uma personagem vivida por uma grande atriz?
A Marília era uma atriz muito singular no que fazia. Ela foi assistir e se saiu com essa: “Me falaram tão bem que vim assistir”. Ela fez observações muito preciosas e ficava preocupada com algumas marcações. Numa cena, o Eriberto (Leão) me puxava e ela chamava minha atenção para o fato de eu ficar toda marcada. De nada adiantava explicar que eu fico marcada por qualquer bobagem, a três por quatro. Na época, foi feita uma exposição sobre as duas montagens e isso também nos aproximou. Uma foto nossa foi ampliada pelo Evaldo Mocarzel (cineasta) e enfeita a produtora dele. Ele diz que são as duas atrizes que ele mais gosta.
Você tinha 19 anos quando interpretou Vera, papel que te projetou e pelo qual ganhou importantes prêmios. O que a Ana Beatriz de hoje diria àquela Ana Beatriz iniciante?
Diria o que ouvi do Gian Maria Volonté (1933-1994) no Festival de Berlim: “Não se iluda. Volte para o seu país e continue a trabalhar de onde estava”. Fiz exatamente o que ele falou. Voltei e concluí os estudos na CAL (Casa de Artes de Laranjeiras). Fui das poucas atrizes da minha geração que pôde se manter fazendo apenas cinema e teatro – e isso ao longo de dez anos. Era outro tempo. Depois, veio Plano Collor e levou embora a Embrafilme e uma série de outras coisas.
Crédito da imagem: Lucio Luna