Quando criança, o lápis na cor ultramar era o favorito no estojo de Adriana Calcanhotto. O nome acabou batizando a única parceria da artista com Fátima Guedes, que lançou a canção no CD “Muito intensa”. O nome continuou a rondar Adriana, que há muito queria usá-lo no título de um show. A vontade esbarrava num fato histórico e diplomático. Muito querida em Portugal (onde lecionou como professora convidada na Universidade de Coimbra), a artista notou que a expressão não era benquista pelos portugueses…
– O nome ultramar remete às colônias ultramarinas portuguesas. Na medida em que o tempo passava, perguntava se já poderia usá-lo num show, e eles diziam que não. Acontece que sou brasileira e estou no outro extremo da questão. Estou numa ex-colônia ultramarina e posso, por isso, usar esse nome no título de um show – explicou Adriana, na noite da última quinta-feira (15), na segunda apresentação no Blue Note Rio da temporada que faz nas sucursais do Rio e na de São Paulo da casa de jazz.
Sim, Adriana é brasileira e mais do que isso. Ela é a compositora mais autêntica surgida na virada dos anos 1980 para a década seguinte (sobressaindo numa leva que trouxe outras cantoras-compositoras potentes) e, ao longo de 35 anos de carreira fonográfica, consolidou-se como um dos nomes mais genuínos da nossa música. E isso deve-se ao fato de ela saber ser sofisticada sem desviar sua atenção do clamor popular (não confundir com popularesco).
E ela dá provas dessa singularidade neste novo show, no qual opta por acompanhar-se ao violão, reavivando um formato que é uma de suas marcas desde os primórdios da carreira e que suscitou projetos como os álbuns ao vivo “Público” (2000) e “Olhos de onda” (2014). Adriana volta ao violão sem soar repetitiva, corroborando assim o que aprendeu com João Gilberto (1931-2019). E, diante da crueza do formato, desnuda-se e revela meandros do seu processo criativo.
– Queria muito uma composição com a Fátima Guedes, a quem prometi uma letra. Já o Antonio Cícero aguardava uma melodia para darmos prosseguimento à nossa parceria. Acontece que sou uma autora de canções e não sei fazer música desassociada da letra. O jeito foi fazer uma canção cuja letra foi entregue à Fátima, e a melodia, ao Cícero. E a Fátima criou uma melodia sofisticada que não saberia reproduzir aqui – comentou antes de apresentar a tal canção, cuja melodia renderia, após letrada por Cícero, a canção “Pelos ares”, gravada no CD “Cantada”, e também incluída no repertório do Blue Note.
– Vou aproveitar que o Cícero está presente para me exibir – avisou Adriana saindo do script com “Asas”, do CD “Marítimo”, explicando em seguida: – Essa canção me foi pedida na apresentação de São Paulo e, para minha surpresa, eu a toquei apesar de não apresentá-la há muito tempo.
E os afagos a Cícero, parceiro constante da artista, estenderam-se a “Inverno”, do álbum “A fábrica do poema” (1994), e a “Maresia”, lançada por Marina e recriada por Adriana em “Público”. As homenagens respingaram também no figurinista Marcelo Pies, companheiro do poeta e muso de “Cariocas”, outra canção que fez Adriana sair do roteiro, aberto ele próprio a improvisos.
E Adriana é também uma hitmaker do quilate de papas do pop como Guilherme Arantes e Lulu Santos. Essa verve faz-se presente em canções como “Esquadros”, “Cantada (Depois de ter você”, “Metade” e “Vambora”, cartada final da apresentação, que contou ainda com “Nature boy” em acenos ao Caetano Veloso de “Totalmente demais” e também a Vinicius de Moraes (1913-1980), cujo tema era um de seus preferidos na música.
São muitas as influências deglutidas e mastigadas pela cantora-compositora ao longo da sua trajetória. E o que resulta dessa antropofagia é uma artista com uma assinatura peculiar e pungente. Adriana Calcanhotto não é de fato uma só, mas é única no que faz.
Crédito das imagens: Christovam de Chevalier