‘Uma alegria acordar a cada dia’

setembro 20, 2024

Fernanda Montenegro, que brilha nos palcos aos 94 anos, fala de seu novo filme, celebra sua geração e exalta sonho de ser imortal

“Estrela Montenegro do universo”. A frase foi cunhada pelo poeta e letrista Fernando Brant  (1946-2015) em “Mulher da vida”, na qual ele e Milton Nascimento saúdam uma de nossas mais importantes atrizes: Fernanda Montenegro. Em 1984, época em que a canção foi lançada por Simone, Fernanda tinha 55 anos e já era uma estrela – e das mais fulgurantes. E isso vale tanto para os palcos quanto para as telas, da TV e do cinema. Aos 94 anos, dona Fernanda – ou Fernandona, como é carinhosamente chamada pelos colegas – é estrela de primeira grandeza, a nortear talentos de diversas gerações e a encantar plateias. Prova disso se dá a cada vez que ela sobe ao palco para a leitura (sim, leitura) de “A cerimônia do adeus”, um dos últimos escritos de Simone de Beauvoir (1908-1986), cujas ideias ajudaram a pavimentar o caminho à emancipação da mulher no mundo. Nossa grande atriz não somente lota teatros como, recentemente, falou para cerca de 15 mil pessoas no Parque Ibirapuera, em São Paulo. E tem tudo para lotar também as salas de cinema. Fernanda se prepara para a première do filme “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, dia 18 de outubro em São Paulo, que ganhou prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Veneza, e encarna Dona Vitória da Paz em “Vitória”,  longa (o último) produzido por Breno Silveira (1964-2022), inspirado no livro de Fábio Gusmão ainda sem data de estreia. “O estado em que a cidade se encontra está pior”, reconhece ela ao falar do Rio de Janeiro, onde ocorreu esta entrevista, realizada de forma presencial. A seguir, a atriz fala sobre ser imortal, celebra sua geração, o reconhecimento tardio da poeta Adélia Prado e o fato de estar viva.

Você lota teatros do país emprestando sua voz às ideias de uma mulher libertária, que fala de desejo e da libido humana. Com qual dos pensamentos de Simone de Beauvoir a senhora mais se identifica?

A ideia que sempre norteou essa iniciativa é justo a que deu título ao projeto anteriormente realizado: “Viver sem tempos mortos”. A Simone de Beauvoir encerra com esse pensamento um de seus livros mais importantes (“A cerimônia do adeus”), e ele sempre esteve presente desde quando comecei a pensar na ideia de levar o pensamento dessa mulher para o palco.

A senhora volta aos cinemas na pele de Dona Vitória da Paz, heterônimo de uma mulher que mudou de nome após denunciar a atuação de narcotraficantes. Como a senhora vê o Rio de Janeiro de hoje, cujos territórios são disputados entre traficantes e milicianos?

O estado em que a cidade se encontra está pior. Tenho uma idade avançada e digo que, lá atrás, havia certa insatisfação e a esperança por um estado de aleluia. Hoje, nossa esperança é perene e acaba ali, no momento seguinte. Aí volta uma nova esperança porque o momento seguinte já acabou. Então, não há carga para um aleluia.

O nome da senhora é o primeiro elencado por Boni ao falar das grandes estrelas da TV em seu novo livro. Como a senhora, que vem do teatro e do rádio, vê aquela junção de talentos que ajudou a forjar a TV Globo que conhecemos hoje?

Esse encontro só foi possível graças à organização do Boni e à organização dramatúrgica do Daniel Filho. E graças também a todo um elenco que veio das escolas de teatro ou mesmo do exercício da preparação dramática dentro da própria estrutura da TV Globo, possibilitada pela administração do Boni, e, claro, dos atores que existiam e exerciam seu ofício pelos palcos do Brasil. Então, foi um momento de grande criatividade.

O poeta e letrista Fernando Brant definiu a senhora como estrela Montenegro do universo. Em qual categoria de mulher a senhora se enquadra mais?

Com a da minha mãe (Carmen Nieddu). Ela foi educada para ser uma mulher prendada, como outras tantas da sua geração, e dizia que, se fosse homem, seria marítimo. Ela não era de reclamar, mas dizia isso. Acho que, no fundo, ela gostaria de desbravar os mares e, assim, conhecer o mundo.

Falando em conhecer, a senhora ajudou a tornar popular, nos anos 1980, a poesia da Adélia Prado através do solo “Dona Doida”…

Graças a Deus!

Como a senhora vê o reconhecimento recente da trajetória dela através de prêmios como o Camões e o Machado de Assis?

Ela fez, graças a Deus, uma obra merecidamente imensa e tem agora esse reconhecimento.  Quero dizer que, mais dia, menos dias, isso iria acontecer… e aconteceu, para usar uma frase de que gosto.

Por falar em ABL, o nome da senhora vinha sendo aventado, há algum tempo, para entrar naquela casa, o que de fato ocorreu em 2022. Como é para a senhora pertencer àquela instituição?

É um sonho. A vida é sonho, já disse o poeta (Calderón de la Barca). Então é bonito isso de estar entre pessoas que admiro. É bonito isso de ser imortal… Só que a gente sabe que, a qualquer hora, cai de maduro ou de boca.

O que mais falta a Fernanda Montenegro realizar?

Acordar amanhã (risos). É uma alegria acordar a cada novo dia.

Crédito da imagem: Divulgação

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