No mundo, muitos são os nomes que conciliam o jornalismo com a criação literária. Com Edney Silvestre não é diferente. Ele tinha menos de 30 anos quando, após ter os originais de um livro avaliado por um editor, ouviu que precisava encontrar seu lugar na literatura. O tempo passou, e Edney tornou-se um dos mais respeitados jornalistas do país. Aos 59 anos, estreia na literatura com “E se eu fechar os olhos agora”. A obra abocanhou de cara prêmios como o Jabuti e o São Paulo de Literatura, inspirou série de TV e foi traduzida para outros seis idiomas. De lá para cá, vieram outros livros, nos quais ambienta suas tramas em épocas importantes da História do país. E o mesmo se dá com sua criação mais recente, “Pequenas vinganças”, no qual as narrativas passam por períodos como a Guerra do Paraguai, a Era Vargas e o governo do agora ex-presidente Jair Bolsonaro. A cada novo livro, ele mostra que encontrou seu lugar na literatura. Afastado da TV Globo, ele começa o ano disposto a encarar novos desafios, como ele conta nesta entrevista, por telefone, ao NEW MAG. Sim, há outros lugares a serem conquistados. E disposição para tanto nunca lhe faltou.
Você e Paulo Francis foram os criadores do “Milênio”, programa de entrevistas que levou à TV brasileira grandes nomes da contemporaneidade no mundo. Num tempo em que os programas de entrevista estão mais voltados a entreter e fazer graça, Marcelo Tas e Pedro Bial preservam a proposta de jogar luz sobre o entrevistado. Essa essência vai se perder com o tempo?
Tudo vai depender do público, do que ele quiser desse tipo de atração, se entretenimento ou informação. Aos dois nomes que você citou eu incluiria o do Roberto D’Ávilla, que mantém o propósito de valorizar o entrevistado. Outro dia ele entrevistou o Fernando Henrique (Cardoso, ex-presidente da república) e me perguntei: mas o Fernando Henrique de novo? Mesmo quando ele repete um entrevistado, o frescor da conversa não se perde e é sempre uma entrevista memorável. No caso do “Milênio”, é importante dar o crédito também para o Jorge Pontual, que foi diretor da TV Globo em Nova York, e um grande entusiasta do “Milênio”. Cheguei no Brasil com três fitas. Uma delas trazia uma entrevista com a Cherry Jones, primeira atriz da Broadway a se assumir lésbica. Quando ela ganhou o Tommy, beijou a companheira antes de subir no palco. Na época, ninguém no Brasil tinha ouvido falar nela e o “Milênio” mostrou, pela primeira vez, uma entrevista com ela. Agora, se a essência dos programas de entrevistas será perdida, isso vai depender do interesse do público.
A Cultura perdeu, nos últimos anos, espaço no jornalismo, prejudicando, sobretudo, a divulgação literária. Hoje, alguns influenciadores como Felipe Neto cumprem o papel de indicar obras e autores. Como você vê essa mudança de paradigma?
Houve uma época em que a televisão era importante para a promoção da literatura. Havia o “Programa do Jô” (Soares), o programa da Leda Nagle (“Sem censura”) e o da Marília Gabriela. Eu mesmo no “GloboNews Literatura” tive oportunidade de conversar com grandes nomes da literatura e com jovens talentos como o Victor Heringuer (que morreu em 2018, aos 30 anos). Veja o caso da Carla Madeira que é, hoje, uma das escritoras mais lidas no país. O nome dela passou a ter mais vulto a partir de uma crônica da Martha Medeiros. A partir disso começou um boca a boca em torno do nome da Carla. O mesmo se deu com o Itamar (Vieira Junior, autor de “Torto arado”), que teve um lançamento modesto. Quem vende o livro é o leitor. Ele é peça-chave para o sucesso de uma determinada obra e de um autor.
Você estreia na literatura em 2009, mas já escrevia antes. Você chegou a mostrar seus escritos a algum grande nome da literatura? Quem te disse, vai, Edney, ser gauche na vida?
Nunca mostrei meus escritos a nenhum grande nome da literatura. Quando tinha 29, 30 anos, levei os originais de um livro a um editor, que já morreu. Ele disse que aquele livro era muito parecido com vários outros que ele recebia e que eu precisava encontrar a minha voz na escrita. Na época, considerei que ele pudesse ter razão e levei um tempo até encontrar o meu lugar na literatura. Certa vez, entrevistei o Salman Rushdie que contou da vez em que ouviu de uma editora que deveria mudar a ordem de alguns trechos de “Os filhos da meia-noite”. Ele saiu da editora fulo da vida, mas, no dia seguinte, começou a considerar as sugestões da editora. Ele se deu conta de que, se mudasse a ordem dos trechos, como sugerido, a essência do livro não mudaria e que ele ficaria ainda melhor.
“Alguma poesia”, do Drummond, foi reescrito por ele ao longo da vida. Lançado originalmente em 2013, “Vidas provisórias” foi reescrito, ganhou novos capítulos, e foi relançado em 2021. O que te incomodava no livro a ponto de reescrevê-lo?
Achei que faltava mais consistência para a dor e para o abandono do Paulo. Outra questão que achei que precisava desenvolver mais era a relação da Bárbara com Nova York. Tem um momento em que ela sai do metrô, ouve uma música ao longe e vai em direção a ela. Acontece que ela estava numa cidade que não conhecia direito, na qual ela se orientava a partir de certos prédios, então isso precisava ficar mais claro para o leitor. Outra questão estava relacionada ao final. Faltou aprofundar mais o sentimento da Susana pela amante, que trabalhou como prostituta. Achei que essas questões precisavam ser aprimoradas para que ficassem mais claras para o leitor.
Você repete o uso de personagens nos seus livros, resgatando um recurso usado, no Brasil, por Jorge Amado e Graciliano Ramos e, no exterior, por Garcia Márquez. Esse resgate é planejado ou acontece de forma inesperada?
Eles simplesmente reaparecem. Mesmo os que morrem, voltam, como a Ana de “Se eu fechar os olhos agora”. Ela morreu, após enfrentar toda uma série de problemas de saúde, e voltou agora no “Pequenas vinganças”. O mesmo se deu com o Sílvio, que era michê, morreu, e que voltou no “Walcome to Copacabana”, num conto em que o personagem está mais jovem.
Você acompanhou de perto os ataques às torres gêmeas em Nova York. Qual foi a situação mais arriscada a qual você se submeteu por dever de ofício.
Não foi em Nova York, mas no Iraque. Nós nos deslocávamos de um lado para o outro sem proteção, tendo como motorista alguém ligado ao governo. Era uma situação muito arriscada. A cada passo, a gente não sabia o que poderia acontecer. Acabou que não fomos alvos de nenhum sniper (atirador) e nenhum ataque dessa natureza, mas a tensão era palpável e constante. Em Nova York, quando fomos ao local dos ataques (às torres gêmeas), sabíamos que qualquer outro avião que surgisse seria alvejado. Houve em seguida o risco da antraz (doença infecciosa causada por bactéria), mas era um risco que todos corríamos. Essa bactéria chegava por correspondência e havia uma agência do correio no prédio onde era a redação da Globo, e o contágio podia se dar pela ventilação.
Você foi afastado recentemente da TV Globo, onde trabalhou por longos anos. O receio já deu lugar à sensação de liberdade?
Com certeza. Assim que a demissão me foi comunicada, a primeira pergunta que me veio foi: o que vou fazer? A primeira iniciativa foi a de procurar um agente. Sendo do Jornalismo, tinha um contrato que impedia que eu usasse a minha voz e a minha imagem fora dali. Por isso que muitos profissionais migram do jornalismo para o entretenimento. Agora, tenho liberdade para fazer dublagens e dar palestras, por exemplo. Tenho uma masterclass: sobre a criação de um romance usando um mesmo personagem em livros diferentes. Tenho a estreia da peça “Casa comigo”, com o (produtor) Gustavo Nunes, e o projeto do musical “Rainhas”, com o Claudio Botelho e o Charles Möeller, ambos para o segundo semestre.
Ia justamente perguntar sobre planos para o futuro, mas você já se antecipou…
Fui dispensado quando a Cultura volta a ser valorizada e isso pode ser muito proveitoso. Imagina se eu tivesse sido dispensado durante a pandemia? Nesse sentido, a TV Globo foi muito correta: segurou todos os profissionais durante a pandemia, mantendo em casa os profissionais acima dos 59 anos. Em se tratando de uma empresa que visa o lucro, isso poderia não ter sido feito, mas foi.
Crédito da imagem: Leo Aversa