‘Tudo passa pela questão racial’

março 8, 2024

Luana Génot fala em prol da igualdade salarial entre gêneros, combate o racismo estrutural e defende Davi na treta com Wanessa Camargo

Luana Génot já sentiu na pele as desigualdades latentes na vida política e social do Brasil. Ela as conhece como mulher e, sobretudo, como mulher negra. Isso num país miscigenado onde, a priori,  o racismo (e suas ramificações) não deveriam sequer existir – mas existem. Com Luana não tem essa de ficar de braços cruzados. Ela é, sim, de reclamar e o faz com inteligência, resiliência e (muita) objetividade. Ela criou, em 2016, o Instituto Identidades do Brasil, cujo propósito é o de conscientizar a sociedade (incluídas organizações e pessoas físicas) sobre a igualdade racial. O instituto está prestes a completar dez anos, e Luana não deita nos louros, pois sabe que há muito ainda a fazer. E ela segue, pulverizando sua voz através das crônicas publicadas no jornal O Globo, do instagram (onde tem mais de 200 mil seguidores) e das palestras país afora. “Acho que ter consciência de ser negro não necessariamente significa que você seja letrado racialmente”, opina ela sobre o fato de o brasileiro estar mais consciente de sua miscigenação. Ao NEW MAG, ela falou sobre os benefícios que a igualdade  salarial entre os gêneros pode trazer à economia, da importância de não reduzir as discussões a exemplos binários e, ainda neste aspecto, comentou a recente polêmica envolvendo Davi e Wanesa Camargo no BBB24: “O que aconteceu com o Davi não é um caso isolado”.

O Instituto Identidades do Brasil, criado em 2016, está próximo a completar uma década de atividades. Qual a conquista mais importante que já pode ser comemorada nestes dez primeiros anos do instituto?

Acredito que a conquista mais importante seja a de levar empresas e organizações a colocarem a mão no bolso em prol da igualdade racial. Muitas empresas faziam isso de forma esparsa e praticamente sem orçamento, tendo um único colaborador negro. E a gente vem com o instituto, fala da igualdade racial, constrói um selo e ajuda a empresa a ter metas e prazos em relação à pauta antirracista. A empresa precisa ter possibilidade de criar uma metodologia estruturada para a implementação de ações contínuas, colocar a mão no bolso e ter educação antirracista na pauta. Acho que foi uma das grandes conquistas que o Instituto tem. Precisamos focar mais nas médias e pequenas empresas, que são maioria no Brasil. Queremos, para tanto, usar, nos próximos anos, inteligência artificial, com mecanismos que possam nos ajudar a exponencializar essa mensagem.

É possível exemplificar esse alcance com números?

Levamos letramento racial e estrutura de planos de trabalho a mais de 700 mil colaboradores a cada  ano, através de ações remotas e presenciais, para mais de 54 mil professores e educadores. Isso também se dá através do nosso prêmio, o Sim à igualdade racial, que reconhece práticas antirracistas, lideranças negras e indígenas, levando suas histórias a mais de 80 milhões de pessoas, segundo dados dos institutos que medem a audiência na TV.

O Censo realizado em 2022 apontou para um aumento de 12% na população que se define como parda. O Brasileiro está mais consciente de que é um povo mestiço?

Acredito que o povo brasileiro esteja mais consciente não somente da sua mestiçagem, mas do que levou essa mestiçagem, que tem a ver com um projeto de branqueamento da pele no Brasil, embora essa consciência ainda não se traduza necessariamente em acesso a direitos ou a um letramento total. Acho que ter consciência de ser negro não necessariamente significa que você seja letrado racialmente. Então, a consciência racial de assumir que você tem uma pele não branca aumentou, mas o letramento de entender os efeitos do racismo estrutural na sua vida pessoal e na sociedade não necessariamente atingiu o patamar que poderia. Até porque a gente também nunca teve uma campanha nacional de letramento racial.

Mas estamos discutindo mais temas como racismo estrutural, não?

As discussões se potencializaram, elas aumentaram ao longo dos anos, especialmente depois do George Floyd. Aquele episódio, nos Estados Unidos,  também atingiu muito midiaticamente o Brasil e se disseminou mesmo nos campos mais populares. As pessoas se identificaram com aquela imagem e viram que poderiam ser aquele homem morto por aquele policial. Mas isso não necessariamente se traduz numa consciência sobre os efeitos que a gente ainda experimenta da escravidão. O Brasil não tem só o problema da pobreza, tem o do racismo estrutural. Então, acho que esse letramento racial ainda não atingiu toda a população.

Recentemente o Brasil viu-se polarizado por um episódio ocorrido num reality show, envolvendo Davi, um participante negro, e a cantora Wanessa Camargo. Como você viu a dimensão que esse assunto ganhou?

Como mãe de um bebê de oito meses (Hugo), me dou licença para dizer que não consigo acompanhar intensamente o BBB, mas vou falar do caso específico que foi do golpe que a Wanessa deu nele. Independentemente da intensidade do golpe, se leve ou não, acho que, pelo que acompanho nas redes, existe uma rixa entre os dois, um isolamento do David como homem negro, que é muito comum, na sociedade como um todo. O que aconteceu com o David, infelizmente não é um caso isolado quando se trata de um homem negro lido como violento. Quando eleva sua voz e diz que sofreu algum tipo de injustiça, é visto como quem faz mimimi. Enfim, a Wanessa tem seus pontos de vista, mas o Davi me parece parte de um sistema muito maior que precisa ser levado em consideração. Ou a gente tem sistemas de hipersexualização ou de cerceamento e de silenciamento ao dizer que tudo o que ele traz é mimimi? Acho que são situações para se refletir sobre o que a gente passa no dia a dia.

Ainda sobre polarizações, aqueles que criticam as mortes de civis palestinos em Gaza são acusados de defender terroristas. Isso me remete àquele pensamento de que todo morador de favela é bandido. Mudar essa mentalidade é uma utopia?

Acredito que os movimentos de polarização, não só no Brasil, mas no mundo, bebem numa fonte daninha que é a da generalização. Toda vez que a gente generaliza que moradores de favela são isso, que quem critica as mortes em Gaza é aquilo, a gente está generalizando opiniões e colocando pessoas como se fossem binárias, enquanto existem muitas camadas que precisam ser consideradas. É muito difícil mudar essa mentalidade de dizer é isso ou aquilo, mas, ao mesmo tempo, a gente mora num país que tem muitas nuances, desde a questão racial. Pensando na condição que é o Brasil, de suas múltiplas nuances, acho que vencer essa utopia de não levar tudo para um campo binário é possível.  Nem todo evangélico é conservador, nem toda mulher é dona de casa, por exemplo. Se a gente consegue educar a população, traz oportunidades para enxergar as coisas para além de um modo binário.

Um tema muito discutido hoje é o da equiparação salarial entre homens e mulheres. Você vislumbra o momento em que a igualdade salarial será consenso no país? Vejo jovens pais conscientes em dar aos filhos uma educação mais igualitária. Acredita ser possível termos uma sociedade menos machista nos próximos 20 anos?

Acho que se a gente fizer uma campanha nacional, de atendimento racial e falar sobre raça e gênero, é possível, em 20 anos, conseguir muito mais consciência e, necessariamente, muito mais apoio e suporte às questões de igualdade salarial. Se os homens entenderem que todo mundo ganha quando as mulheres trabalham e conseguem melhores salários, a gente entende que as economias vão crescer a partir daí. A gente ouve que falar sobre essas questões é mimimi, só que não é. Tem a ver com o crescimento da economia e com a gente. Se a gente fizer um letramento que se balize na importância da adesão de todas as pessoas às políticas de igualdade salarial, a gente consegue acelerar uma cultura de um país que entende que é necessário superar esse tipo de desigualdade em prol de uma economia forte.

Você é uma mulher que é referência para outras tantas, mulheres negras, exercendo seu papel com influência e competência. O que Luana Génot precisa conquistar e que ainda não conseguiu?

Acho que falar cada vez mais com a massa. Existe uma dificuldade de distribuição de conteúdos relativos ao letramento racial que ainda nos colocam numa bolha. Existem muitas iniciativas bacanas, mas todas com um poder de alcance aquém do que poderiam. Meu grande desejo é poder falar cada vez mais às massas e poder ajudar o Brasil a entender a importância de a gente falar sobre racismo estrutural, para o combate da desigualdade de modo geral, entrelaçado com outras questões como a de justiça climática ou a reforma trabalhista. Tudo passa pela questão racial.  Se a gente entender como essas questões se conectam e que, sem igualdade racial, a economia não cresce, acho que a gente vai dar um grande salto.

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