Obstinação é uma palavra que Samuel de Assis conhece bem. Sem ela, o público não conheceria esse artista que, aos 41 anos, destaca-se entre os talentos da sua geração. E foi a obstinação que levou-o a deixar Salvador (BA), onde cresceu, e rumar para São Paulo a fim de aperfeiçoar-se como ator. Tendo a bênção do pai, coronel da PM, Samuel começou a trilhar ali uma trajetória difícil, cuja perseverança leva-o a brilhar hoje no streaming, no cinema e na TV. E também no teatro. É ali onde ele trata de temas que precisam – e muito – serem discutidos pela sociedade. As muitas manifestações de racismo arraigadas na sociedade estão em “E vocês, quem são?”, solo dirigido e interpretado por ele a partir do texto de Jonathan Raymundo no Centro Cultural São Paulo (onde fica até este domingo, 30). O ator participou ainda da Dança dos Famosos, do Domingão com Huck, e, por isso estava a mil. Na entrevista, o ator fala sobre preconceito, intolerância religiosa, louva o legado de Zezé Motta, que acaba de completar 80 anos, e vislumbra um país mais igualitário e com uma imprensa menos bisbilhoteira. “A vida íntima de um indivíduo não é importante para ninguém”, defende.
Espetáculos como o seu e “Macacos”, do Clayton Nascimento, levam a público as diferentes formas de racismo arraigadas na nossa sociedade. Será possível um país menos racista nos próximos 20 anos?
É possível a partir do momento em que estejamos falando mais sobre racismo hoje, em cena ou fora dela. Há quem acredite que nunca existiu racismo no Brasil e há ainda quem acredite que não há mais racismo no nosso país. E quando não se fala sobre essas coisas parece que elas não existiram. É importante que a sociedade tenha consciência de que vivemos, sim, num país racista, onde as tradições da cultura negra precisam ser respeitadas e disseminadas. A História do Brasil é negra e miscigenada e, durante muito tempo, só conhecemos nossa História a partir do ponto de vista dos brancos. É importante levar as pessoas a repensar suas origens. Por isso o nome da peça: E vocês, quem são?
Em São Gonçalo, no grande Rio, traficantes estão proibindo adeptos das religiões de matriz africana de usarem branco. Hoje, ao defender a liberdade, é preciso peitar a criminalidade…
Isso é de uma atrocidade que nem sei se consigo falar a respeito… Temos de defender nossa pele, nosso desejo e também nossas crenças… Tudo o que veio de nós foi apagado ou criminalizado ao longo da História. E isso continua acontecendo, não mais pela força do colonizador, mas por segmentos religiosos e criminosos da sociedade, nos quais pessoas negras estão inseridas. Então isso é algo difícil de lidar.
Você foi, aos 41 anos, protagonista numa novela cuja proposta era a de reavaliar questões como etarismo e masculinidade tóxica. Qual a reação mais tocante surgida em razão do Ben?
Uma das coisas mais tocantes foi quando eu estava num aniversário na Mangueira e mais de cem crianças pediram para ver o pai da Jeniffer (personagem de Bella Campos). Foram chamar o pai da Bella e soubemos, então, que elas queriam me conhecer. Para elas, o Ben era a representação do pai que nunca tiveram. E isso foi uma coisa muito bonita que o personagem trazia: ele tinha sua conduta pautada pelo amor. Ele mostrou que uma pessoa preta poderia ser bem-sucedida, ter um papel de destaque na sociedade, mas ele também era a representação do amor: pela filha, pela mulher, pela ex-mulher. Essa empatia que ele despertou foi muito bonita.
A Dança dos Famosos é um concurso acompanhado pelo Brasil inteiro. Como foi conciliar a expectativa do público com os desafios trazidos por cada estilo de dança?
Tentei passar batido pela expectativa do público se não enlouqueceria. Até porque não tinha tempo para me preocupar com isso. Ensaiava no início da semana, gravava e, na sexta de manhã, viajo para fazer o espetáculo. Essa experiência foi gratificante por me proporcionar conhecer diferentes estilos de dança, seus ritmos, e também por me levar a dançar.
Seu primeiro contato com o teatro deu-se num grupo espírita e sua estreia no cinema foi no longa sobre Chico Xavier. Coincidências ou não?
Diria que foi uma coincidência feliz, apesar de não acreditar em coincidências (risos). No caso do Chico, fiz cinco testes para diferentes personagens e fiquei muito emocionado por ter participado daquele projeto. Fiz meus dois primeiros trabalhos em cinema (o outro foi em “5x Favela – Agora por nós mesmos”) simultaneamente e isso foi uma loucura. Em uma semana, estava num set, na outra, em outro, mas valeu a pena. Não poderia perder a oportunidade de trabalhar com o Daniel Filho e com o Cacá Diegues, dois de nossos maiores diretores.
Seu pai, um coronel da PM, aceitou de boa sua escolha pelas artes dramáticas?
Super e desde sempre. Desde quando decidi ir embora para estudar em São Paulo, em momento algum, meu pai se opôs a minha escolha e nem ofereceu nenhum tipo de objeção. Meu pai sempre foi meu parceiro. Ele é meu mestre, meu brother e sempre esteve ao meu lado.
Ao longo da sua trajetória qual foi o obstáculo mais difícil de transpor?
O maior (fica um momento em silêncio) é conseguir permanecer na profissão. A profissão do ator é muito instável, cheia de altos e baixos, e o começo é muito árduo, com muitos perrengues. Então, conseguir se manter é muito difícil. Perseverar é necessário, mas isso te exige muito.
Hoje, graças a uma iniciativa da Zezé Motta, o Brasil conhece uma gama de atores negros talentosíssimos. Para você qual a principal marca que a Zezé, que completou 80 anos, deixa à sociedade brasileira?
O maior e o mais importante é o de não deixar a nossa História se apagar. A Zezé já passou por tudo e conseguiu tornar-se sex symbol e dar ao negro o lugar de protagonista. A resiliência dela é algo muito importante. Certa vez, a encontrei no Projac e fiz questão de falar com ela. Ao abraçá-la, chorei e ela ficou emocionada também. Se eu estava ali, naquele lugar, devo isso a ela. E faço o espetáculo também por causa dela.
Quando declarou sentir atração por pessoas inteligentes isso causou uma celeuma danada. É possível chegarmos a um tempo em que a vida pessoal não vai interessar à imprensa?
Vai depender da própria imprensa. No teatro, temos um trabalho de fomento de público, Voltado à formação de plateias, que inclui desde promover o acesso gratuito a levar o teatro às periferias. Isso leva tempo e demanda muita perseverança. Muitas vezes, em entrevistas, o repórter é invasivo com o argumento de que o povo quer saber. Não, o povo quer saber sobre outras tantas coisas que não são permitidas a ele. Então, da mesma forma que há esse trabalho em formar plateias, a imprensa também precisa passar por uma mudança. É preciso fazer um trabalho de fomentação da informação. A vida íntima de um indivíduo não é importante para ninguém. E isso vale para artistas, médicos, bombeiros, quem quer que seja.
Crédito da imagem: Catarina Ribeiro