Natural que o aguardado show que marca o reencontro entre Maria Bethânia e Caetano Veloso suscitasse expectativas – e elas não foram poucas. Sobretudo em se tratando de um hiato que durou 46 anos, desde o show histórico de 1977. E a longa espera valeu a pena. O “tempo, tempo, tempo, tempo” promoveu mais do que um espetáculo: um ato de comunhão comovente, e que correspondeu a todas as expectativas. E ele se deu na noite do último sábado (03), quando os irmãos abriram, na Farmasi Arena, Zona Oeste do Rio de Janeiro, a turnê nacional de “Caetano e Bethânia”, que percorrerá sete capitais do país.
“Alegria, alegria”, canção tropicalista que tornou Caetano conhecido em âmbito nacional, foi a escolhida para abrir o espetáculo. E ela estabelece também um elo com o show de 1977, em que, numa deliciosa inversão de papéis, era cantada por Bethânia imediatamente após Caetano interpretar “Carcará”, marco-inicial na trajetória musical da cantora.
No novo show, Bethânia e Caetano vestem, respectivamente, um conjunto em vermelho e um terno azul claro (a artista usa um conjunto dourado em homenagem a Oxum). As cores aludem aos orixás dos artistas: Iansã e Oxóssi. E “Alegria, alegria” abre alas a “Os mais Doces Bárbaros”, canção que abriu o também histórico show que (re)uniu os irmãos a Gal Costa (1945-2022) e Gilberto Gil.
O clima de celebração se mantém com “Gente”, gravada pelos irmãos em seus LPs de 1977, “Pássaro da manhã” e “Bicho”, seguida por “Oração ao tempo” num sinal de que o clima do espetáculo ficaria mais sereno – e não menos emocionante.
E não mesmo. Os irmãos fazem oportunas e merecidas homenagens a figuras às quais estão emotivamente ligados. A primeira delas é Dona Canô (1907-2012), mãe da dupla. A matriarca é saudada por “Motriz”, canção de Caetano lançada por Bethânia no LP “Ciclo” (1983), e cantada em duo pelos irmãos. O tema é seguido por “Não identificado”. Lançada por Caetano em 1969 e incluída por Bethânia no show “Rosa dos ventos” (1971), a balada de ar futurista era o xodó de Canô.
O roteiro possibilita aos irmãos o resgate de uma pérola. A dupla reaviva “Dedicatória”, canção de Caetano com que Bethânia homenageou Mãe Menininha do Gantois (1894-1986)no show em que a intérprete celebrou, em 1985, seus 20 anos de carreira. A ialorixá é celebrada pela dupla também com “Filhos de Gandhi”, afoxé de Gil incluído por Bethânia no show “Drama 3º ato” (1973).
O roteiro é composto também por momentos em que os artistas ficam sozinhos em cena. O de Caetano é aberto por “Sozinho”, balada de Peninha, seguida de “O leãozinho”, tema que, no show de 1977, era interpretado por Bethânia num andamento de blues. E um dos pontos altos do set solo de Bethânia é “As canções que você fez pra mim”, de Roberto e Erasmo Carlos. A balada, que deu título ao tributo à dupla feito pela artista em 1993, ganhou arranjo surpreendente de Jorge Helder e de Lucas Nunes, responsáveis pela direção musical do espetáculo, no qual contam com a colaboração de Pretinho da Serrinha.
Os irmãos voltam a dividir o palco e dão, com isso, sequência a mais homenagens. A Mangueira não poderia ficar de fora, claro. A escola, que homenageou os Doces Bárbáros em 1994 e foi campeã com Bethânia em 2016, é reverenciada pela dupla em trechos dos sambas-enredo “Atrás da verde e rosa só não vai quem já morreu” e “A menina dos olhos de Oyá”.
“Baby” foi composta por Caetano a partir dos conselhos ouvidos da irmã, como o que ele deveria ouvir “aquela canção do Roberto (Carlos)”. A canção, gravada por Bethânia no LP “Recital na boate Barroco” (1968). E Bethânia e Caetano voltam a cantá-la numa homenagem àquela que foi a voz feminina da Tropicália, e seu nome é Gal.
A saudosa cantora é saudada ainda em “Vaca profana”, lançada por Gal em 1984 e interpretada pela primeira vez por Bethânia. Os artistas dão ainda um voto de “Fé” à jovem cantora Iza, cuja separação deu o que falar na imprensa.
“Tudo de novo”, que abria o histórico show de 1977, é a canção que fecha o reencontro. Ela é precedida por “Reconvexo”, lançada por Bethânia em 1989 e comumente cantada pela artista em seus shows. Os dois irmãos deixam o palco ao som de “Odara”, ovacionados pelo público.
E Caetano e Bethânia encerram, assim, mais um (re)encontro histórico. E, se alguém esperava ver tudo de novo, encontrou um espetáculo (re)novado por dois artistas que nunca pararam no “tempo, tempo, tempo, tempo”. E são, por isso, compositores dos seus destinos e tambores de todos os ritmos.
Crédito das imagens: Thereza Eugênia e Márcio Debelian