‘Transgressora eu acho que sou até hoje’

outubro 18, 2024

A dramaturga Leilah Assumpção celebra 55 anos de carreira com nova peça e fala sobre o feminismo nos anos 1960 e hoje, como enfrentou a censura e os preconceitos sofridos na carreira

Não a chame de senhora! Sempre à  frente de seu tempo, Leilah Assumpção, indiscutivelmente uma das mais importantes dramaturgas do Brasil, não tem esse tipo de cerimônia. Sua magistral obra, sim, merece todos os grandes títulos e homenagens. Em mais de 20 peças escritas, sendo 15 montadas, ela debateu e levou ao público a questão da opressão feminina no Brasil como ninguém. Ex-modelo de grandes costureiros como Dener (1937-1978) e Clodovil (1937-2009), Leilah escreveu seu primeiro espetáculo após conviver com as ‘solteironas’ no pensionato para moças onde morava, em São Paulo. E, desde então, tem sido uma das maiores observadoras da condição da mulher brasileira no teatro nacional. Nada a impede. Nem a ditadura e sua pungente censura (suas peças iniciais datam dos anos 1960 e 1970), nem a moral da época ou a sua beleza. Sofreu preconceito por ser bonita até mesmo do grande ator britânico Laurence Olivier (1907-1989), que a esnobou em uma festa. “Bonita demais para ser dramaturga”, disse ele, em tom irritado, ao sair sem sequer cumprimentá-la. Não foi o único a duvidar de seu talento para a escrita em prol de sua figura. Mas Leilah nunca se deixou abalar. Sempre seguiu em frente com a certeza que só os talentosos têm. Logo se tornou a voz de uma geração e colecionou prêmios, incluindo Molière com sua primeira peça, “Fala baixo senão eu grito”, encenada por Marília Pêra (1943-2015). Este ano, ela completa 55 anos de carreira com uma novidade. Após cinco anos longe dos palcos, a dramaturga brinda o público com “Mergulho no mistério dela”, peça inédita em cartaz no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo. Desta vez, coloca no palco duas mulheres acima de 70 anos, interpretadas por Kate Hansen Nicole Puzzi. A seguir, ela fala do novo trabalho, das diferenças entre o feminismo de outrora e o de hoje, como enfrentava a censura e sua atual grande paixão, motivo, inclusive, para voltar a escrever.

A nova peça faz parte das comemorações pelos 55 anos de carreira? Nela, a personagem Cibele, de Kate Hansen, assim como você, é filósofa. Ela tem muito de você?

Não. Essa peça eu escrevi pouco antes da pandemia. Ela ia ser montada na época, mas não pude por causa da pandemia. Não planejo nada especial. Já estou muito feliz por causa da peça nova. Coincidiu de ser 55 anos de carreira. Já a Cibele tem muito de várias pessoas que conheço. Nunca é de uma pessoa só. Eu vou pegando um pouco de cada um.

Você fez muito pelas mulheres…

Tanta gente trabalhou pra isso, né? A Marta Suplicy, Ruth Cardoso, Eva Bly. Nós tínhamos um grupo que se chamava FNM (no início assim batizado em alusão à potência de um caminhão fabricado na época, conhecido como FêNêMê, e depois transformado em Frente Nacional das Mulheres). A gente se reunia pra decidir se a gente tinha que se candidatar. E isso lá atrás. Ninguém nem ouvia falar nada de feminismo.

Como vê o feminismo hoje em relação a quando começou a escrever?

Feminismo naquela época era pejorativo. Não era legal ser feminista. A gente precisava ter coragem. Hoje existem diferentes formas de feminismo. Hoje está mais pluralizado. Tem alguns, inclusive, com os quais não concordo. Muito radicais, que excluem o homem. Eu acho que o homem faz parte. Mas tem esse horror que estamos vivendo agora que é a morte de mulheres, uma loucura o feminicídio. Não entendo isso.

Você era modelo. Como começou a escrever?

Escrevo desde pequenininha porque minha mãe era escritora e professora e meu pai também, naquela época em que ser professora era uma coisa legal. Com 11 anos escrevi meu primeiro livro, mas não tem qualidade esse livro, não. Depois continuei escrevendo. Aí me formei durante a ditadura, não dava para lecionar. Então, fui ser manequim do Dener. Por vaidade também. Eu era muito vaidosa!

Mas em que momento decidiu expor na escrita a condição feminina?

Eu sou do interior. Então, em São Paulo, eu morava em um pensionato de moças. Naquela época se não morasse em pensionato você ficava famosa. Eu era das mais jovens. E tinha as que a gente chamava de ‘solteironas’. Elas todas eram virgens e não se adaptavam mais na cidade delas e também não conseguiram se adaptar a São Paulo. Aí começou a surgir dentro de mim essa personagem com pena delas, que se chamava Mariazinha, que é do “Fala baixo senão eu grito”. E foi crescendo essa minha consciência de como elas eram ‘coitadinhas’. Aí numa noite escrevi a peça.

Nessa nova obra, você se debruça sobre duas mulheres com mais de 70 anos. Já sentiu, na própria pele, o etarismo?

Não sei responder. Não que eu tenha percebido.

O episódio com o ator inglês Laurence Olivier foi um preconceito com a sua beleza…

Ah, sim. Isso sofri muito. Quando lancei a peça “Fala baixo…” eu era manequim do Dener. Ninguém acreditava que eu havia escrito a peça. E a Marília Pêra também não tinha essa fama toda. Ficou famosa depois. Lembro que o próprio Dener deu uma entrevista e disse para o repórter: “Você acha que a Leilah vai conseguir escrever outra peça?”. Muitos, inclusive, achavam que não era eu que tinha escrito. Ou achavam que não conseguiria fazer outra. Mas eu não tenho nada contra a beleza. Gosto, inclusive, de me vestir muito bem. Me tornei uma velha chique (risos).

Mulher, escrevendo na época da ditadura, ainda sofrendo preconceito pela beleza… Foi muita coisa pra enfrentar!

Foi, mas eu ia numa boa. Quando a peça era proibida eu me vestia chiquetérrima e ia lá tentar liberar. E conseguia. Uma delas, “Roda cor de roda”, eu enchi de palavrão pra censura se preocupar em cortar os palavrões e deixar a essência da história, mas quando vi passou tudo. Era um censor novo que se encantou com a peça e deixou tudo. Aí não era eu que ia cortar os palavrões, né? (risos). Então, até hoje ela está publicada cheia de palavrões.

É diferente escrever hoje, sem a censura sobre os ombros?

Na verdade, não. Porque eu já escrevia com toda a liberdade. Eu nunca me autocensurei. Se eles quisessem proibir que proibissem. Hoje são 15 peças montadas com muito sucesso. Tive alguns fracassos também. E tenho mais de 20 peças escritas.

Como avalia o seu legado?

Comecei tentando conscientizar a mulher brasileira, de tão oprimida que ela era. Tem uma moça que está escrevendo uma tese de doutorado sobre o meu trabalho e ela disse que eu conscientizei a mulher da sua condição e depois eu passei a ser transgressora. E transgressora eu acho que até hoje eu sou! Pra ser mulher temos que transgredir algumas coisas ou não conseguimos nada.

Seu marido sempre te apoiou ou às vezes ele achava que você ia um pouco longe demais?

Sempre me apoiou. Estou com ele há 44 anos e hoje vivemos em casas separadas. Mas a gente é muito íntimo. E ele tem uma namorada agora e nós três nos damos muito bem. Ela é ótima. Moderno, né? É uma transgressão também (risos).

Por quê voltar ao teatro agora?

Antes eu não tinha uma obra. Agora eu tenho uma obra grande, né? Mas estou focada agora nos netos. Essa peça nova eu escrevi porque tive netos e me apaixonei por eles. E eu adoro o final. De todas as peças que escrevi, esse final é o que eu mais gosto. Além do mais, um escritor nunca se aposenta, né?

Credito da imagem: Vânia Toledo

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