O termo “buda nagô” foi cunhado por Gilberto Gil para reverenciar Dorival Caymmi (1914-2008), então com 78 anos, em uma das faixas de “Parabolicamará”, álbum de 1992. Trinta e dois anos depois, o termo é também a definição perfeita para o próprio Gil. Afinal, ele é, aos 82 anos, mais do que um gigante da nossa música; é, ele próprio, um sacerdote no sentido de alguém que compartilha saberes. E, no caso de Gil, eles não são poucos. O artista e imortal vai pegar mais leve em relação ao ofício no qual deu “aquele abraço” em idos dos anos 1960, quando seu nome ganhou vulto na vida cultural brasileira. Ele fará, em 2025, sua última grande turnê, o que não significa que vai abandonar “régua e o compasso”. Pelo contrário, vai assumir “outras dedicações à música e ao mundo poético”, como conta ao NEW MAG nesta entrevista, feita presencialmente no Rio de Janeiro. O compositor me disse (e nos diz a seguir), suas impressões sobre as mudanças climáticas, o uso da inteligência artificial e sobre política, esfera com a qual já flertou, além de elencar as características que fazem de Preta Gil sinônimo de resiliência. No mundo há muitos lugares bacanas e um deles é aqui e agora.
O senhor fará sua última grande turnê em 2025. Como planeja lidar com a música e com a criação artística nos próximos anos?
Estou vindo de São Paulo onde trabalhei na ópera “Amor azul”, que Aldo Brizzi e eu escrevemos tendo como base um poema de Deva, um grande poeta hindu milenar e foi interessantíssimo por envolver músicos jovens de uma orquestra de São Paulo com percussionistas baianos, um dançarino indiano e personagens extraordinários do mundo mítico dessa cultura indiana pela qual me interesso muito e sempre me interessei. Isso é para dar um exemplo de um tipo de deslocamento que a minha carreira e o meu trabalho musical e autoral podem me propiciar. E outros desses exemplos virão a partir dessa turnê final com outros compromissos e dedicações à música e ao mundo poético e literário. Essas coisas virão naturalmente enquanto vida houver.
Ciência e tecnologia estão presentes no seu cancioneiro desde os anos 1960 e em álbuns como Parabolicamará e Quanta. A Inteligência Artificial é um fascínio ou uma ameaça?
As duas coisas, como todos os produtos da mente e da ação humanas, como da própria Natureza, que é caprichosa, faz benefícios enormes pela vida no Planeta, e sabe ser dura e punitiva também. Então, a inteligência artificial é resultante da acumulação de muito conhecimento, desenvolvimento técnico ligado às linguagens humanas e a seus desdobramentos através da técnica.
Na música Queremos saber o senhor fala da relação do homem com a tecnologia e com a própria Natureza. As mudanças climáticas estão aí. Como o senhor vê as consequências provocadas pelo descaso com o planeta?
Como resultado da intensificação dos desafios que são naturais, com os quais a gente tem de lidar o tempo todo. A relação do homem com a Natureza, como tratá-la e como ser tratado por ela, como respondê-la de forma mais incisiva é uma questão antiga, que está aqui desde que o macaco virou homem e passou a ser quem somos hoje. Com o desenvolvimento da civilização e da Ciência, da qual temos hoje um conhecimento cada vez maior, os desafios vão se tornando maiores também. A Natureza passa a exigir que nossa relação com ela seja mais sábia e inteligente para que ela própria, a Natureza, como entidade global, seja também mais sábia com o ser humano.
Preta chegou aos 50 anos como um símbolo de coragem e resiliência. Qual característica dela mais te encanta?
Preta fez 50 anos, e a lembrança mais perene que guardo dela é a dos seus primeiros cinco anos. Esses 50 contam pouco para mim. Ela nunca deixou de ser a menina alegre entusiasmada e inteligente, ativa, criativa que ela era aos cinco anos. Ela montava um palco no jardim lá de casa, na Bahia, e, aos domingos, após o almoço, ela fazia o show dela, com as coisas dela e isso podia ser um teatro, um show ou uma pantomima, um bocado de coisas ao mesmo tempo. Ela passou a vida fazendo isso até se profissionalizar como artista e continua fazendo assim, continuou com essa vivacidade permanente que ela tem. E mesmo agora, com o sofrimento natural que uma doença provoca, ela continua intensa, inteligente e resignada no sentido mais profundo da palavra.
Nos anos 1980, o senhor criticou o descaso político com os versos “gente estúpida, gente hipócrita”. Como anda a fé na política neste ano eleitoral?
Presto atenção na política como um cidadão sem um envolvimento próximo. Os envolvimentos que já tive, na Bahia (Gil foi eleito vereador em Salvador) e depois no ministério (da Cultura), foram envolvimentos efêmeros, que deram-se num tempo e espaço próprios. Não me tornei um político profissional. Então, quando falo de política, não precisa ser a partir de um ponto de vista profissional, e sim do ponto de vista da cidadania. A política está aí, a democracia está aí, ainda que muitas vezes ameaçada. O sustentáculo básico da democracia é o voto, a eleição, a escolha democrática dos seus representantes pela sociedade.
Vai votar nas eleições deste ano?
Tenho 82 anos e vou votar. Ainda ontem, estava pensando nessa questão e decidi que vou (votar).Ainda tenho vontade, ainda tenho energia, e é uma coisa simples, num dia de domingo, você sai de casa para sua seção eleitoral e vota.
O senhor trocou recentemente São Conrado por Copacabana. Conseguiu, como na canção, dar uma volta na Praça do Lido?
Vou sempre ali, ando por ali, por aqueles lugares todos e gosto de ir até o Leme… Caminho no calçadão, faço tudo por ali. Adoro Copacabana. É um bairro cosmopolita no seu sentido mais profundo. Talvez seja o bairro que mais represente a cidade do Rio de Janeiro na sua diversidade complexa.
No samba “Então vale a pena”, de 1978, o senhor fala que a morte vale a pena quando se teve tempo para viver de fato. A perda de companheiros como Gal, Rita Lee e João Donato mudou sua visão sobre o tema?
Não. A morte faz parte da vida, ela finaliza um ciclo de vivência nesse mundo, nesse planeta e tem sido um estímulo à própria tentativa de superação dela pelo homem, pela medicina, pela busca da cura e pela busca de um mundo mágico, auxiliar nesse projeto de extensividade da vida humana. E, nesse sentido, a morte é rainha. Quando ela chega, chega e pronto. A gente tem de aceitá-la, apesar de todo esse trabalho permanente da superação da morte ou mesmo da extensão da vida a tempos mais longos, onde a morte seja cada vez mais tardia. Ainda que tardia, ela vem em algum momento.
Para encerrarmos, o melhor lugar do mundo é aqui e agora?
Aqui e agora sempre, pelo menos deveria ser. Essa é a idealização. O bem-estar deve estar onde estamos (risos).
Crédito da imagem: Niclas Weber