‘Somos um país maravilhoso que está à deriva’

abril 29, 2022

Simone fala, em entrevista, do novo álbum, de Fernanda Montenegro, relembra Flávio Rangel, manda recado a Ney Matogrosso e reflete sobre política

Conversar com Simone é um prazer. Inteligente, perspicaz, bem-humorada e sincera. Essa última é uma característica perene na vida dessa artista que, em idos dos anos 1970, trocou as quadras de basquete pelos palcos e estúdios. E, neles, deixa a sinceridade transparecer ao cantar o que escolheu para si.  Ela é aquele tipo de cantora que a gente ouve e logo identifica. “Uma pessoa é o que a sua voz é”, escreveu Fernanda Montenegro num bilhete que inspirou, anos mais tarde, uma parceria musical entre as duas. E a voz de Simone espelha o que ela é: vigorosa e genuína. E renova-se ao cantar as palavras de autores – nordestinos, como ela – reunidos em “Da gente”, seu novo álbum.  “Tudo o que canto gostaria de viver ou já vivi”, revela ela, por telefone, nesse bate-papo com NEW MAG. Numa licença poética com “Estilhaços”, canção de Cátia de França gravada por ela, sua voz não tem algemas. E isso é uma das coisas que fazem essa Cigarra ser única.

No seu novo trabalho você grava autores do Nordeste, alguns consagrados e, outros, de gerações mais novas. O que te levou a dar voz a eles?

A ideia do disco me acompanhou há algum tempo e, por causa da pandemia, ganhou novo sentido. Devo isso também a essa figura generosíssima que é a Zélia Duncan (diretora artística do álbum), que fuça as coisas e descobre autores e canções extraordinários. Foi ela quem trouxe o Juliano Holanda (diretor musical e autor de duas faixas do disco), outro “fucento” que, por sua vez, foi quem trouxe a Joana (Terra, autora com PC Silva de “Por que você não vem?”). ZD e eu conversamos muito sobre o repertório e tivemos um encontro presencial, quando ouvi “Estilhaços” (Cátia de França) e “Haja terapia” (Juliano Holanda), que me levou às lágrimas. O Juliano mesmo eu só conheci pessoalmente três dias antes de entrarmos no estúdio. O Bom Baiano (Webster Santos) eu já conhecia…

Ele tocou no show ‘Amigo é casa’ (2006), apresentado por você e pela Zélia…

Isso. A música da Karina (Buhr, “Amor brando”) eu já conhecia e achei legal o lado para o qual o Juliano a levou. Algumas das canções, como a do Martins (“A gente se aproveita”) e “Nua”, do Tiago (Torres da Silva), eu já havia testado nas lives. Tudo o que canto gostaria de viver ou já vivi. E o disco aconteceu no momento certo e com as pessoas certas.

As lives te aproximaram da Ana Costa e da  Leila Pinheiro. Como foi essa aproximação? 

Com a Ana eu já havia estado algumas vezes. Com a Leila, uma única vez, naquele show lindo (“Extravios”) em que ela foi dirigida pela Ana Beatriz Nogueira. Não tocava violão há muito tempo, e as lives me reaproximaram do instrumento. Era eu ali, sozinha e pensei: “já que vou, vou”. Os colegas notaram minha dificuldade e foram solidários. Leila mandou mensagem em que dizia: “se precisar, faço BG (base gravada)”. A Ana a mesma coisa. A Marina (Lima) também foi uma gracinha.

Elas chegaram, inclusive, a fazer coro nas gravações…

Sim, eu comecei a explorá-las (risos). Imagina, foram 36 lives! A cada semana, um repertório diferente. Tinha seis dias para me preparar. O Tiago (Torres da Silva) ia definindo comigo o repertório e muitos dos músicos que colaboraram, gravavam de madrugada. Estou devendo a uma cantora, aliás. Monica Salmaso me convidou para cantar com ela “Paixão e fé” (de Tavinho Moura e Fernando Brandt,  lançada por Simone no LP “Face a face”, de 1977) e travei. Um dia destravo e fazemos.

Por falar no Brandt, o álbum ‘Delirios, delícias’ é dedicado a Fernanda Montenegro, homenageada no mesmo disco com ‘Mulher da vida’. Como vê a entrada dela na ABL?

Vejo como um presente para todos nós. A Fernanda é aquele tipo de pessoa para a vida inteira. O que ela nos deu ao longo da vida é de uma enormidade. A maneira como ela fala um texto é deslumbrante. A forma como ela trabalha as pausas ninguém faz igual. Ela credita sua biografia à arte e nunca desistiu disso. Quando a conheci, ajoelhei e ela, gentil como é, fez o mesmo. Nos apresentar era um desejo do (diretor teatral) Flávio Rangel.

Muitos dos teus shows foram dirigidos por ele, que muito fez pelo teatro e que as novas gerações não conheceram. Qual o maior ensinamento que guarda do Flávio?

Como homem de teatro que era, o Flávio não olhava para o palco de frente apenas. Ele entendia minha inquietude e me deixava muito à vontade. Poucas vezes obedeci a marcações, e essas sugestões sempre foram aceitas. Ele não interrompia meu processo criativo nem as inquietações todas. Quando ele sugeria uma canção, era sempre uma sugestão que se mostraria acertada. Foi ele quem sugeriu “Caminhando” (“Para dizer que não falei de flores”, de Geraldo Vandré). Ele disse: “Olha, pode ser que essa canção traga aborrecimentos, mas pode ser que traga alegrias. Eu aposto na segunda opção”.

E você a cantou em 1979, justo quando o Brasil começava a respirar ares mais leves em razão da abertura política…

Sim! Quando o Flávio sugeriu, falei de pronto: vou cantar. Ele perguntou se não gostaria de um tempo para pensar e disse que não. Se ele estava sugerindo, iria fazer e fiz.

Já que o assunto é direção, Ney Matogrosso te dirigiu nos shows ‘Sou eu’ e ‘Fica comigo esta noite’. Vocês nunca pensaram em um disco ou em um show juntos? 

 Pede para ele te responder isso (risos). Eu quero, mas ele nunca tem tempo. Seu Pereira (como Simone se refere a Ney) é um sonho. Ele só me chama de Cigarra, então fala para ele assim: “a Cigarra pediu para te perguntar isso” (risos).

E vai ter show do ‘Da gente’?

Quero muito. Do momento em que o álbum foi finalizado, no fim de setembro, até agora, esperei quase nove meses, o tempo de uma gestação. Vamos esperar mais um pouco para o show, mas posso dizer que sim, vai ter show.

Ao gravar canções como ‘Atrevida’ e ‘Começar de novo’, você colaborou muito para a emancipação feminina. Há hoje mais avanços ou retrocessos nesse campo?

Adoraria que tivéssemos avançado léguas, mas voltamos dois passos para trás para avançarmos em seguida. Sempre me posicionei em relação ao que achava importante. Nunca tive medo. Há discussões que ganharam uma relevância da qual discordo. É muito silicone e pouco livro. A mulher não pode se fechar para a vida. Terminou um relacionamento, busca outro! É como cantava o Cazuza: “Brasil, mostra a tua cara”. A gente pode andar com medo ainda, mas andamos. E, assim, caminhamos.

E a sua crença no Brasil? Será que conseguiremos resgatar, este ano, ‘um país mais que divino/masculino, feminino e plural’*?

Acredito muito no Brasil. Para tanto, esse “demônio lunático” precisa sair de onde está. Precisamos resgatar a pátria que já foi nossa. Não podemos ter vergonha dela. As cores da bandeira são nossas, o país é nosso e não propriedade de nenhum louco. Eu quero o país sobre o qual ouvia falar quando era criança. Esse país precisa de políticos que olhem para as pessoas, para a pátria. Somos um país maravilhoso que está à deriva. A gente precisa de políticos que façam esse país merecer o nome de Brasil. Não sei se a minha geração vai conseguir ver isso. Certamente, as futuras.

*Versos de “Falou, amizade”, de Caetano Veloso,  gravada por Simone no álbum “Sedução”, de 1988.

Crédito da foto: Nana Moraes

 

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