‘Sempre procurei o caminho da liberdade’

outubro 27, 2023

Claudia Abreu, que vive Virginia Woolf no teatro, fala de liberdade, filhos, de Gilberto Braga e lembra momentos marcantes na TV

Claudia Abreu tinha 19 anos quando, em 1989, integrou a montagem de “Orlando”, dirigida por Bia Lessa a partir do romance homônimo de Virginia Woolf (1882-1941). Como a personagem, Claudia, uma das mais brilhantes atrizes de seu tempo, também assumiu diferentes rostos. E volta ao universo da escritora britânica 34 anos depois. A personagem em questão é a própria autora, a quem Claudia, já tocada pelo prazer de escrever, voltara, aconselhada por sua professora de literatura. Sim, ela nunca deixou de aprimorar-se e isso vale tanto para a atriz quanto para a pessoa comum, da qual nunca se desvencilhou. Para seus filhos entenderem sua profissão, voltou ao Tablado por duas vezes, num intervalo de dez anos. “Foi por essa necessidade de me reconectar com aquele desejo puro que a profissão me dá”, conta ela nesta entrevista, por telefone, ao NEW MAG. Esse desejo ela também encontra em “Virgínia”, com que volta ao Rio, agora ao Teatro Prio, um ano depois de estrear na cidade. A atriz fala a seguir de liberdade, da relação com os filhos, do legado de Gilberto Braga (1945-2021) e lembra momentos na TV vividos com José Wilker (1944-2014) e Malu Mader.

Ao fim das sessões de “Virgínia”, você fala da conquista da liberdade para realizar aquilo no que se acredita. O que foi mais doloroso no caminho até essa conquista?

Sempre procurei o caminho da liberdade. Tenho um fluxo constante de trabalhos na TV, no teatro e no cinema, e sempre tive uma relação honesta com esses meios. Quando o cinema renasceu, após o baque da Embrafilme no governo Collor, fiz bastante cinema. Essa necessidade de maior liberdade foi mais radicalizada a partir da minha descoberta da escrita, que culminou no “Valentins” (série infanto-juvenil criada por Claudia juntamente com Flávia Lins e Silva) e que venho desenvolvendo até esse trabalho de agora. Queria ser a autora dos meus projetos e fiquei muito encantada com essa possibilidade. Estou fazendo o “Virgínia sem patrocínio, no risco…

Dependendo unicamente da bilheteria, então…

À exceção das apresentações no Sesc, realizadas em São Paulo, as do Rio e as de Belo Horizonte (MG) e as do Nordeste foram feitas com bilheteria, no risco. Quero ser a autora dos meus projetos. Uma coisa é você ser dona da sua palavra e abordar um assunto que te importa. Não é nada fácil, mas ter essa liberdade não tem preço.

Virginia devora a biblioteca do pai numa deliciosa vingança contra a opressão masculina. Já cometeu algo semelhante para fazer valer uma vontade?

Acho que um dos pontos que me aproximam da Virgínia é o fato de termos perseverado nas nossas profissões. Comecei a trabalhar muito cedo. Aos 16, já fazia novela (“Hipertensão”)e, aos 20, estava interpretando Hamlet no teatro. Nos finais de semana, deixava de viajar com amigos para fazer teatro e filipetar no shopping com o figurino da personagem. E, por isso, abri mão da minha adolescência e tive de amadurecer antes da hora. Não tinha maturidade para lidar com a exposição em que a profissão te coloca, por exemplo. No caso da Virgínia, mesmo diante de todas as adversidades, ela conseguiu se dedicar à escrita e constituir uma obra.

Você já sendo conhecida, foi à universidade e, anos depois de sair do Tablado, voltou a ele. Não perder, com a licença do Wisnik, sua expressão mais simples é uma preocupação?

Acho que a preocupação é a de não perder o frescor de poder me surpreender com as coisas. A vida traz novidades, que valem para todos e, sobretudo, para nós mesmos. Quando voltei ao Tablado para fazer o “Pluft”, foi por essa necessidade de me reconectar com aquele desejo puro que a profissão me dá.

E também foi importante para estreitar laços com seus filhos, não?

Foi fundamental para eles entenderem a minha profissão. Fiz o “Pluft” em 2003, quando cuidava de dois filhos pequenos, e voltei a ele dez anos depois. Quando saía de casa para trabalhar, era aquela choradeira e foi a forma que encontrei para trazê-los para o meu trabalho. Eles chegavam comigo ao teatro e viam os atores se maquiando e se aquecendo e isso foi muito bom.

Você criou seus filhos sabendo preservar como poucos artistas sua privacidade. Você já foi cobrada ou criticada por eles para se expor mais?

Não, eles já me cobraram para fazer mais novelas (risos). Na medida em que cresceram, ouviram comentários sobre trabalhos meus e certamente tiveram curiosidade de me ver atuando. Recentemente, fiz um trabalho no streaming cuja trama era ambientada num hospital (‘Sutura”, da Amazon Prime). Eu e a Felipa havíamos maratonado o “Grey’s anatomy” e, quando veio esse convite, ela virou-se para mim e sentenciou: “Você vai aceitar, né” (risos).

Uma cena marcante na TV é a de quando a Heloísa, sua personagem em Anos rebeledes, mostra ao pai, interpretado por José Wilker as marcas deixadas no corpo pelos torturadores.

Aquela cena foi difícil e levou muito tempo para ser gravada. Sempre chegava um ponto em que eu ou o Wilker travávamos por sermos atravessados pela dor. Certas cenas podem ser mais difíceis de executar, mas quando você tem conhecimento do que foi vivido por aqueles personagens, como era o caso do Wilker, ela pode tocar em pontos muitos sensíveis. Poucas vezes vivi algo semelhante na TV.

Qual a lembrança mais marcante do Wilker?

A de um amigo sensível e atencioso. Certa vez, terminei um namoro, e ele me presenteou com a coleção completa do Proust. Ele sabia que eu estava passando por um processo de amadurecimento e me disse que a leitura daqueles livros contribuiria muito para isso.

E a Betty Lago foi sua mãe na série. Qual a melhor lembrança da Betty?

Aquele foi o primeiro trabalho da Betty na TV…  Ao mesmo tempo em que ela era sofisticada, era divertidíssima, com tiradas rápidas e sempre afiada nos comentários. Ela, eu e Malu (Mader) ficamos muito próximas. A inteligência da Betty é do que sinto mais falta.

É responsabilidade do ator, do autor ou de ambos quando o público se apaixona por uma vilã como a Laura de “Celebridade?

Ela era, ainda por cima, uma vilã de Gilberto Braga, o que dá ao personagem um poder maior de sedução. O Gilberto tinha a capacidade de olhar para a sociedade e fazer um retrato fiel e ao mesmo tempo crítico a ela. Além do dom de colocar com naturalidade amoralidades na boca de uma personagem, ele sabia construir diálogos inesquecíveis.

Você e Malu protagonizaram nessa novela uma cena antológica, a da briga no banheiro do Canecão, que reeditou uma cena de “Água viva”, interpretada pela Betty Faria e pela Tamara Taxman…

Fazer novela é muito divertido. Muitas vezes você não sabe o que vai acontecer e tem de lidar com situações inesperadas e até absurdas. A Malu ficou um pouco cabreira e questionou a violência da cena, mas, no fim, foi muito divertido. Eu, pessoalmente não teria apanhado tanto, mas o Dênis (Carvalho, diretor) disse que aquela cena lavaria a alma do público.

Voltando à Virgínia, o mundo passa por duas guerras, e o Rio está entregue às milícias. O que te levaria a, num sentido figurado, tomar cicuta?

Poxa… Acho que talvez uma situação de extrema violência com alguém da minha família. Tenho me sensibilizado muito com o que sofrem as mães no Oriente Médio, tanto as de Israel quanto as de Gaza. Há uma situação de terror acontecendo em ambos os lados. Além das inúmeras mortes, há um tanto de civis sequestrados e torturados, e essa situação precisa ser evitada. É muito fácil para nós, que temos uma situação privilegiada, falar, mas o fato é que há muitas pessoas vivendo e lidando com situações extremas e isso é algo degradante.

Você no teatro já foi Hamlet e já atuou em Noite de Reis. De fato, como a Virginia diz na peça, tudo está em Shakespeare?

Sim. Não li a obra toda do Shakespeare, mas boa parte de suas peças e também seus sonetos. E, poucas vezes, encontrei num autor uma percepção tão completa da existência e do comportamento humano. E que, ainda por cima, falou de tudo isso com palavras poéticas.

Crédito da imagem: Bob Wolfenson

 

 

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