‘Sempre fui corajosa’

junho 24, 2022

Zélia Duncan fala sobre a porção escritora, o trabalho com Simone, relembra show com Bethânia e joga luz sobre sua geração

Zélia Duncan vai fundo no que realiza. E acaba por fazer bem o que se propõe. Compositora inspirada e dona de um dos mais belos timbres da nossa música, ela faz jus ao título de um de seus álbuns e se transforma em outras. Em muitas, melhor dizendo. O público tem oportunidade de conhecer agora duas outras Zélias: a cuidadosa diretora artística do álbum “Da gente”, lançado pela cantora Simone, e a profícua escritora, autora de “Benditas coisas que eu não sei – Músicas, memórias, nostalgias felizes” (Agir). Na obra, ela reúne 23 ensaios e um breve diário nos quais expõe seu olhar (e sua relação) com a música. Como ela é parte desse todo, desnuda-se com a serenidade de quem está em paz consigo. “Hoje, quero estar onde minha paz estiver”, reitera ela, por telefone, nesta entrevista ao NEW MAG, ao qual comenta seus feitos recentes e sua trajetória, vasta e sortida (para aludirmos a outro dos seus discos) como ela própria.

O livro tem uma característica gostosa que é a de parecer que estamos conversando contigo. Como foi encontrar o tom da tua escrita?

Não foi difícil encontrar esse tom. Escrevo há muito tempo. Sempre tive um caderno no qual escrevia e esse tom ficou mais presente a partir das crônicas que escrevi para o Globo. Esse clima de conversa já foi se estabelecendo ali. Não sou uma intelectual, uma acadêmica, então a minha escrita vai por um caminho mais informal e poético, uma vez que a poesia é muito importante para mim. Fica poética sem que eu tenha de pirar com isso. Então, o resultado é algo entre o coloquial e o poético. Há no livro momentos em que falo que o canto é antes de tudo uma fala e eu tenho essa percepção também com a escrita. Talvez venha daí esse clima de conversa que o livro traz.

Você assina a direção artística do álbum “Da gente”, lançado recentemente pela Simone, para quem você mostrou muitas das canções gravadas. Num meio de tanta vaidade, você teve essa generosidade para com uma colega. Como foi para você estar nesse lugar?

Bacana isso de você perceber essa generosidade. Ela é um exercício, e eu o pratico há muitos anos. Não é fácil, ainda mais num meio competitivo como o da música. Tem uma coisa que me cansa que é isso de você, como artista, ter de ser o tempo todo up to date, ter de ter sempre uma sacada. Isso é muito cansativo. No caso de trabalhar com uma cantora como a Simone, cujas atitudes me ajudaram, lá atrás, a me aceitar como pessoa, esse trabalho é quase como pagar uma dívida.  “Haja terapia” foi uma canção que levei para ela. Não era a minha hora de cantá-la e sim a dela. A gente conversou muito durante a pandemia e uma coisa que eu disse era que ela não precisava dos clássicos nesse momento. Sei como é difícil para artistas da geração dela aceitar certas coisas, mas ela foi muito receptiva a tudo. Por causa desse trabalho, fui chamada por outros artistas para fazer algo semelhante, mas a onda não é só o trabalho em si. Tem toda uma questão de eu conhecer a trajetória daquela artista. A Simone sabe o quanto a amo, o quanto a carreira dela é importante para mim e acho que, através desse trabalho, tive oportunidade de mostrar isso a ela.

Tem uma história de que o primeiro show dela a que você assistiu foi no Scala e que o Cristóvão Bastos, então maestro da cantora,  te deu os convites. É verdade?

O primeiro show a que assisti dela foi no Canecão. Para você ter ideia de como tem tempo, eu namorava o (guitarrista) Nelson Faria e nós viemos de Brasília para assistir a esse show. O show no Scala foi depois. Eu já cantava na noite, no Clube 1, e o Cristóvão ia lá. Aproveitava e pedia a ele para tocar “Embarcação” (gravada por Simone no LP “Corpo e alma”), do Chico (Buarque) e do Francis (Hime). Ele gostava de mim, descolou os convites e fui. Mas não falei com ela naquela ocasião. Anos depois, quando fui pela primeira vez à casa dela, vi a foto em que ela está vestida com o macacão que usava no show do Canecão, o que me emocionou e comentei isso com ela. São os prêmios que a gente ganha. O resto é só vida.

Você surge na cena musical na virada dos anos 1980 para os 90, juntamente com Marisa Monte, Cássia Eller, Adriana Calcanhotto, Ithamara Koorax…

Selma Reis…

Uma mulherada da pesada! E você diz, no livro, que a Cássia é a maior dentre todas vocês. Dentre os homens, quem é o maior?

Olha você aí querendo me botar numa enrascada… Na minha geração tem um quarteto que é muito importante: Lenine, Chico César, (Paulinho) Moska e Zeca Baleiro. Não posso deixar de falar no Chico Science, que causou uma revolução na cena musical. Todos esses nomes tinham ali os seus 30 anos quando aconteceram. A nossa geração ficou, nos anos 1980, muito espremida pelo rock, pelo repertório romântico e pelo sertanejo. Ficamos sem lugar, e os anos 1990 foram a nossa década! Não posso esquecer os Raimundos, que tinham uma pegada muito nordestina no rock deles. Temos uma diversidade de influências. Por isso que, na época em que “Catedral” estourou, quando me perguntavam o que eu cantava, respondia que faço pop-folck-acústico-brasileiro.

A Rádio JB FM realizou um show em que você, Cássia e Adriana se apresentaram tendo Maria Bethânia como madrinha. Qual a lembrança mais marcante daquele momento?

A Bethânia fez questão de abrir a noite e, num dado momento, ela nos chamava ao palco para cantarmos “Cantores do Rádio”. Durante a apresentação, ficamos as três na coxia, nervosas, cada uma à sua maneira. Adriana de olhos arregalados, Cássia rindo e eu séria, respirando. Eis que Adriana me pergunta qual de nós entraria primeiro. Como sempre fui rápida nas respostas, disse que seria por ordem alfabética (risos). Isso foi algo que nos descontraiu e acabamos entrando quase juntas. Pena que, na época, ainda não existia YouTube.

Adriana chegou a te presentear com uma gata, não?

Ela me deu a Doralice, que viveu muitos anos, até 2013. Eu não era nada gateira, mas morri de amores pela Doralice. Ela era filha da gata da Adriana e houve uma situação em que ela foi lá em casa e ficou muito emocionada por ver a Doralice. A gata dela havia morrido e esse reencontro foi emocionante para ela.

A pandemia e um novo amor fizeram você trocar o Rio por São Paulo. Como foi tomar essa decisão?

Foi muito feliz. Mantenho a casa no Rio, para onde vou sempre. Então, temos uma casa em São Paulo e outra, no Rio. Ainda não me achei em São Paulo como moradora. Vim para cá na pandemia, então fiquei muito em casa e estou começando a sair agora. Dia desses, assisti à Cátia de França no Sesc Pompeia. São Paulo tem esse lado cultural incrível! Quando se é jovem, a gente pensa que o melhor está sempre por vir. Hoje, quero estar onde a minha paz estiver, e isso é algo que a maturidade te dá. Quero estar em paz com meu par, em paz comigo mesma. O melhor não está por vir, o melhor é agora.

Você atuou na peça ‘Mordidas’ e, recentemente, escreveu um texto para Ana Beatriz Nogueira. Voltar ao teatro é um caminho natural?

Para a Zélia de hoje é sim. Para a Zélia de sempre, diria até. Fiz teatro amador em Brasília e, lá pelos 20, 21 anos, quando voltei ao Rio em definitivo, me matriculei na CAL (Casa de Artes de Laranjeiras). Sabia que iria cantar, mas isso foi para não ficar obsessiva por cantar. Sabia, de certa forma, que tudo o mais que fizesse beneficiaria a cantora, a intérprete. A Monica Salmaso está lendo o livro e, esses dias, me mandou uma frase que chamou sua atenção e da qual nem lembrava que havia escrito: Tudo o que a gente acumula na vida a gente é no palco. Se tudo é bom, será bom para a cantora. Sempre fui corajosa porque tenho essa voz comigo. E isso tem a ver também com uma consciência que é a de ter hoje voz na sociedade.

No livro você fala mais de uma vez sobre não ser uma pessoa de crendices. Onde é que foi parar a sua fé?

A minha fé é no caminho, na trilha que escolhemos. A gente leva de fato muitas coisas conosco quando vamos para o palco. Uma delas é a batalha para estarmos ali. Uma mania que tenho é a de entrar no palco com o pé direito, e isso é o máximo de crendice que me permito. No palco me sinto muito segura. Não me sinto bem em nenhum outro lugar como me sinto no palco. Fico muito incomodada com os artistas que demonstram algum desconforto logo nas primeiras músicas, que já reclamam de algo que esteja ruim. O público precisa ser preservado ao máximo, e o artista tem de segurar a onda. É claro que, em se tratando de uma apresentação ao vivo, tudo é possível, e o público gosta quando aquela noite é especial. É algo sobre o qual vão comentar no futuro: lembra daquele show em que a Zélia tirou os sapatos porque estavam incomodando? Somos de carne e osso, e o público gosta quando uma verdade é revelada.

Crédito da imagem: Roberto Setton

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