Kleber Mendonça Filho é hoje um dos grandes nomes do nosso cinema. O diretor viu seu nome ganhar projeção nacional com o longa “O som ao redor” e, em seguida, “Aquarius” e “Bacurau” mostraram que ele tem, aos 54 anos, credenciais para estar em pé de igualdade com gênios como Glauber Rocha (1939-1981) e Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988). A pandemia acendeu nele as memórias de importantes salas de cinema do Recife, seu estado natal. O resultado é “Retratos fantasmas”, no qual volta ao documentário, gênero com o qual iniciou sua carreira. No filme, ele usa imagens de “Recife de dentro para fora”, curta de Kátia Mesel que foi todo digitalizado em 4k. “Retratos fantasmas” estreou no Festival de Cannes e terá sua primeira exibição no Brasil, em agosto, abrindo o Festival de Gramado, chegando em seguida às salas de cinema, onde, segundo o diretor, ficarão o tempo que for possível. “Até onde conseguir vou dar esse tratamento aos meus filmes”, comenta ele, por zoom, nesta entrevista ao NEW MAG na qual critica o descaso do governo anterior com a Cinemateca de São Paulo, compara Sonia Braga a Alfred Hitchcock (1899-1980) e revela que “Bacurau” não só pode ter continuidade como resultar em algo surpreendente. Assim é Kleber Mendonça.
O trailer de “Retratos fantasmas” traz muitas imagens de salas antigas de cinema no Recife. O filme seria o teu “Cinema Paradiso” como uma declaração de amor à sétima arte?
Ele não foi feito com essa intenção, mas o carinho e a ideia de lembrança que há no filme talvez tenha também percorrido o processo do Giuseppe Tornatore (diretor de “Cinema Paradiso”). Eu, pessoalmente, não uso essa expressão de carta de amor ao cinema por ela ter sido muito usada ultimamente. Mas ela tem sido trazida pelas pessoas que já viram o filme. Acho bonito quando as pessoas falam, mas eu, pessoalmente não uso essa expressão, mas estou totalmente de boa com ela. Desde muito cedo entendi que não trabalharia com nenhuma outra área senão a do cinema. E o filme inevitavelmente reflete uma vida que tem sido dedicada a filmar, a contar histórias e a observar a forma como nos relacionamos com os filmes. Fui crianças nos anos 1970, adolescente nos 1980 e fui apresentado aos filmes através de dois elementos: a televisão e o cinema. E, ao longos dos anos, pelo vídeo-cassete e pela TV a cabo. Tudo isso hoje é um balaio de coisas, e o filme é fruto de alguém que tem essa bagagem.
Você usa no filme imagens do curta “Recife de dentro pra fora”, da Kátia Mesel. O que te levou a fazer um meta filme?
O Rio de Janeiro é uma cidade historicamente muito filmada. Como pernambucano, fui colonizado por imagens do Rio, através da Rede Globo. Cada cidade tem o que chamo de seu álbum de imagens, que vêm do jornalismo, da teledramaturgia, do cinema e de fotografias. No “Retratos” entendi que seria interessante se conseguisse formar um álbum de fotografias do Recife. O “Recife de dentro para fora” é um dos melhores curtas feitos no Brasil e um dos grandes filmes pernambucanos, que teve uma carreira sensacional em 1997 e, de lá para cá, ficou esquecido por não ter sido atualizado às novas tecnologias. Desde o início do filme, entendi que todos os materiais de arquivo usados seriam atualizados. Não queria baixar uma imagem do Youtube e colocar no filme. Vi nisso uma oportunidade de devolver o filme à Kátia e fazermos o renascimento desse curta, que foi todo escaneado em 4k, ganhou projeção de cor e estou feliz por ter 15 minutos dele nesse meu projeto.
Você trabalhou no Retratos nos últimos sete anos e o finalizou nos últimos quatro, quando as políticas de incentivo cultural estavam totalmente sucateadas. Com o que foi mais difícil de lidar nesses momentos finais?
O filme foi afetado em duas frentes: uma relacionada às incertezas de financiamento, por ser um filme muito pessoal, que não tem estrutura de ficção, ainda que seja também de ficção, com muito material de arquivo, o que não faz dele um filme caro. Esse balckout pelo qual a produção brasileira passou trouxe tensão e, com a pandemia, entendi que o filme precisava ser feito no tempo dele. Essa insegurança não foi tão grave quanto a insegurança pela dificuldade de acesso ao acervo da Cinemateca Brasileira. Ela passou por um momento de enorme vergonha, com alguns vigilantes e uma brigada de incêndio reduzidíssima, e isso foi o que mais me deixou triste por não poder mais acessar nada, nem eu nem ninguém. A Cinemateca fechou suas portas e isso foi fruto de um governo absolutamente estúpido.
Há a máxima de que o cinema é a arte do diretor. Nos teus filmes de ficção, o roteiro é sempre surpreendente. Da onde vem esse seu gosto por despistar e surpreender?
Cada filme tem um conjunto de necessidades. No caso do “Retratos”, ele não teve roteiro. Tive ideias incompletas que eram fortes o suficiente para eu fazer o filme. Muitas delas estavam baseadas na possibilidade de encontrar ou não determinadas imagens. Às vezes, encontrava o que não procurei e isso me levou a alterar a ideia original. “Recife frio” a “Bacurau” são filmes com roteiros que abrem possibilidade para coisas novas serem agregadas. O “Retratos” foi feito na montagem e no arquivo. O que fazia com Matheus (Farias, montador do filme)à tarde interferiria na narração, gravada depois das onze da noite, quando os meninos dormiam (Kleber é pai de dois meninos) e, no dia seguinte, era levada à montagem, que pedia novas coisas para a noite. Não ter roteiro pode ser interessante, mas não funciona para um filme de duas horas. O roteiro é uma lista de compras bem organizada.
Em “Aquarius”, você recolocou Sonia Braga no lugar de protagonista do nosso cinema, voltando a trabalhar com ela em “Bacurau”. Qual o significado da Sonia na tua formação?
Sonia Braga é alguém que sempre admirei e que se tornaram divinas através da Cultura. Da mesma forma que, na música, Caetano Veloso e Nirvana fazem parte da minha vida. Sonia entrou na minha vida quando era criança, pela TV, através de “Dancin Days”e “Espelho mágico”. Passava com minha mãe pelos cinemas de rua e via os cartazes de “Dona Flor” e de “A dama do lotação”, que eram impróprios para mim. Sonia sempre fez parte da minha vida até que, em “Aquarius”, trabalhamos juntos. E me senti como que perto da ideia de divindade, como se estivesse perto de Alfred Hitchcock. Senti algo semelhante com Paul Verhoeven, com quem jantei algumas vezes. Ele faz parte da minha vida a partir de filmes como “Robocop”, “Show Girls” e dos filmes holandeses dele.
Você é, aos 54 anos, um dos grandes diretores do nosso cinema e já foi apontado pelo Financial Times como um dos 25 brasileiros nos quais devemos prestar atenção. O que falta alcançar que ainda não conseguiu?
Não tenho metas e talvez meu objetivo seja o de continuar fazendo cinema, me expressando de forma honesta e franca, o que tenho feito desde meus curtas metragens. Tenho uma fome grande por fazer filmes e gosto que cada um seja surpreendente de alguma maneira. Penso numa continuidade de “Bacurau” que seja uma surpresa total, nada que alguém espere. Não tenho plano de carreira, que é construída a cada nova realização. Acho ótimo que “Retratos” venha depois de “Bacurau”. Isso não foi planejado e foi impactado pela pandemia, que levou a me dedicar à memória guardada. Quero que cada filme seja uma surpresa e que eles sejam feitos de forma muito tranquila e honesta. Fazer cinema já é muito tenso e agregar mais tensão a isso é algo que não faço.
Muitas produções são feitas diretamente para o streaming. Qual o futuro das salas de cinema?
Acho que as salas de cinema não morrem. Estamos passando por um tipo de ajuste, quase que fiscal, porque a cada vez que o audiovisual passa por uma revolução, isso acarreta numa atualização de números. Quando a TV surgiu nos EUA, em fins dos anos 1940,isso deu uma paulada histórica nas salas de cinema. A mesma coisa com a popularização da TV no Brasil, nos anos 1970, e, depois, com o videocassete, as salas de cinema se atualizaram. Estamos vendo uma nova atualização no mundo inteiro, que tem a ver com o streaming e com a pandemia. O capitalismo é feito alguém que tem fome e que, em vez de esperar, come a própria mão, sem se dar conta de que irá precisar dela. A pandemia fez com que a Warner lançasse “Duna” e “Matrix” direto no streaming, o que nos ensinou que estamos num novo mundo. Vamos dar ao “Retratos” o tratamento de filme de cinema: ele vai estrear ali e vamos segurar o tempo que for para ele ter a vida dele na sala de cinema. Depois, terá uma vida nas plataformas digitais e, depois, outra no streaming. Até onde conseguir vou dar esse tratamento aos meus filmes.