‘Quem votou nele vai entender’

fevereiro 13, 2025

Todd Haynes, que preside o júri da Berlinale, critica Trump e pede pela integridade de cineastas, relata Rodrigo Fonseca

por Rodrigo Fonseca*

Apesar de uma indisfarçável animosidade por Donald Trump e suas recentes ações de verve transfóbicas e homofóbicas, o diretor Todd Haynes – ícone da estética queer nos EUA desde a década 1990, responsável por sucessos como “Carol”, com Cate Blanchett – assegurou uma arrancada serena para a 75ª Berlinale. Aos 64 anos, o californiano assume a presidência do júri do festival germânico, que tem o Brasil na caça pelo Urso de Ouro, representado por “O Último Azul”, de Gabriel Mascaro.

–  Venho de um universo criativo que passou a se expressar com o boom da Aids, buscando reagir ao que vivíamos, e, até hoje, o cinema indie abre avenidas para vozes serem ouvidas  –  disse Haynes  em resposta ao NewMag, no hotel Hyatt, sede das coletivas da Berlinale.

Seu colegiado de juradas e jurados é composto por três cineastas (a alemã Maria Schrader, que também é atriz; o marroquino Nabil Ayouch; e o argentino Rodrigo Moreno); a figurinista Bina Daigeler, egressa de Munique; a crítica de cinema Amy Nicholson, do Los Angeles Times; e a estrela chinesa Fan Bingbing.

–  Temos aqui um lugar para abrirmos novas janelas e discutir propostas de mundo –  respondeu Ayouch, numa sala de conferências que reuniu Haynes, o coletivo do júri e a recém-empossada curadora da maratona, Tricia Tuttle, egressa do BFI – London Film Festival. Dedicado hoje ao projeto “Fever”, cinebiografia da cantora Peggy Lee (1920-2002), com Michelle Williams no papel central, Haynes chegou à Berlinale carregando uma perda profissional nos ombros.

Em agosto de 2024, teve um longa adiado (quiçá cancelado), às vésperas de iniciar suas filmagens, em decorrência da perda de seu protagonista, Joaquin Phoenix. O astro recusou-se a seguir com o compromisso firmado com o realizador de “Velvet Goldmine” (1998), sem tornar públicas suas justificativas. Tomou bordoada de todo o lado pela opção de abandonar a empreitada – um roteiro centrado numa paixão entre dois homens – que dependia de seu star quality para sair do papel. Haynes jamais apropriou-se de seu posto no festival alemão para criticar o caso. Ataque dele só a Trump.

–  Uma hora quem votou nele vai entender o que se passa por trás de suas promessas. No campo do cinema, o que temos de fazer é manter nossa integridade –  declarou Haynes, que teve seu sucesso mais recente, “Segredos de um escândalo” (“May December”), lançado no Prime Video, o streaming da Amazon.

Em dezembro, esse drama devastador sobre desejos e projeções de identidade figurou numa das listas de maior prestígio do audiovisual: a enquete anual de 10 Mais da revista francesa Cahiers du Cinéma. A equipe crítica do periódico elegeu “Segredos de um escândalo” como o segundo melhor filme de 2024 – o n° 1 foi “Misericórdia”, de Alain Giraudie. Estrelado por Natalie Portman e Julianne Moore, o longa concorreu ao Oscar de Melhor Roteiro Original (escrito por Samy Burch e Alex Mechanik).

–  Natalie me procurou com o projeto, duvidando de que Julianne, minha parceira em vários trabalhos, fosse se interessar em atuar com a gente. A adesão dela ao receber o script foi imediata e calorosa –  revelou o cineasta ao site, em recente entrevista no Festival de san Sebastián, na Espanha.

O diretor e parte da equipe na coletiva

Concorrente à Palma de Ouro de Cannes de 2023, “Segredos de um escândalo” é uma produção de US$ 20 milhões. Seu enredo narra o empenho de uma atriz, Elizabeth (papel de Portman), para encenar a conflituosa vida da vendedora Gracie (Julianne), que teve um caso com um adolescente 30 anos mais moço na loja onde trabalhava. Ela acabou por se casar com o menino que, hoje, adulto (vivido com esplendor por Charles Melton), repensa as escolhas de seu passado.

Para narrar esse caso, Haynes contou com trilha sonora de Marcelo Zarvos, do Brasil. Também brasileiro é seu (habitual) montador, o paulista Affonso Gonçalves, com que trabalhou também na minissérie “Mildred Pierce” (2011), no ar na Prime Video. Foi Affonso quem montou “Ainda estou aqui”, de Walter Salles, hoje indicado a três Oscars.

–  Affonso entende o que eu penso sem eu precisar falar muito. É um colaborador essencial. Eu sou ruim de olhar o material bruto do que rodo, e entrego a ele a tarefa de me propor uma versão inicial do que rodamos. Ele sempre traz boas ideias –  elogia o cineasta, que rodou ainda produções aclamadas como “Sem fôlego” (2017) e “O Preço da verdade” (2019).

Esta noite, “Das Licht” (“The Light”), do alemão Tom Tykwer, abre a Berlinale. No drama do diretor de “Corra, Lola, corra” (1998), uma família se aboleta num apartamento administrando mal suas desarmonias. Embora as complexidades do dia a dia distanciem seus integrantes, eles ainda preservam algum amor. Quando passam a conviver com a síria Farrah (vivida por Tala Al-Deen), contratada como governanta, esse clã, que é chefiado por Milena (Nicolette Krebitz) e Tim (Lars Eidinger, brilhante em cena), terá novas lições de empatia.

Além de “O último azul” (com Denise Wainberg e Rodrigo Santoro) na caçada ao Urso de Ouro, a presença nacional em Berlim este ano estende-se com a participação dos filmes “A melhor mãe do mundo”, de Anna Mulaert; “Hora do recreio”, de Lucia Murat; “A Natureza das coisas Invisíveis”, de Rafaela Camelo; “Ato noturno”, de Filipe Matzembacher e Marcio Reolon; “Zizi (Ou Oração Da Jaca Fabulosa)”, de Felipe M. Bragança; “Cartas do absurdo”, de Gabraz Sanna; “Arame farpado”, de Gustavo de Carvalho; “Entardecer en América”, de Matías Rojas Valencia; e “Anba dlo”, de Luiza Calagian e Rosa Caldeira.

Passa lá ainda uma prévia da série “De menor”, de Caru Alves de Souza. Cult dos anos 1970, a coprodução germânica “Iracema, uma transa amazônica” (1975), com Paulo César Peréio (1940-2024) na estrada, sob a direção de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, terá sua cópia restaurada exibida no festival, na seção Forum Expanded.

Na comemoração do aniversário do Forum berlinense, “Muito romântico” (2016), de Melissa Dullius e Gustavo Jahn, terá novas exibições. Dois seriados nossos estão no EFM,o European Film Market, a ala de negócios da Berlinale: “Reencarne”, com a marca autoral do diretor Bruno Safadi, e “Máscaras de oxigênio (não) cairão automaticamente”, que tem Carol Minêm e Marcelo Gomes na direção.

*Enviado especial ao Festival de Berlim

 

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