‘Precisamos voltar àquele lugar da tolerância’

setembro 23, 2022

Roberta Sá fala sobre o novo projeto, seu lugar no samba, levanta a voz contra o etarismo e, grávida da primeira filha, espera um futuro melhor para o país

Ao longo de 17 anos de carreira, Roberta Sá foi firme nos seus propósitos e, aos 41 anos, consolidou sua voz como uma das mais belas da nossa música. É aquele tipo de cantora que pode fazer o que der na telha, pois o resultado será primoroso. Os últimos dois anos foram de aprendizado para ela, que, impossibilitada de cantar, não deixou de compor. Agora, tomada pela “sede de alegria”, sobre ao palco do Circo Voador, neste sábado (24), para gravar seu terceiro DVD, “Sambasá”. Artista que sempre mostrou conceitos a cada trabalho, ela fará desta vez uma grande roda de samba na qual vai saudar novos talentos e reverenciar ídolos como Áurea Martins, uma das participações especialíssimas que terá. Roberta está atenta ao presente sem esnobar as tradições  e, grávida da primeira filha, Lina (que virá em novembro), mantém acesa a chama da esperança num futuro melhor, como entrega nesta entrevista, por telefone, ao NEW MAG.

Você conseguiu, aos 42 anos, se firmar como uma jovem cantora de samba num meio majoritariamente masculino. Nesses 17 anos de carreira, o que foi mais difícil de quebrar?

Nunca me senti uma cantora de samba, então sempre pisei nesse terreno com muito cuidado, devagarinho, como na música do Monarco, sempre com muita deferência aos seus baluartes. Me vejo mais como uma cantora a serviço do samba, sempre que ele me quiser – e ele me quer (risos)! O samba é um gênero majoritariamente masculino onde as intérpretes sempre conseguiram se impor, e cito como exemplo Clara (Nunes), Elizeth (Cardoso) e Beth (Carvalho), mulheres que fizeram valer suas vozes. O que me incomoda mais é essa resistência em ter mais mulheres musicistas no samba. Hoje, há mais abertura às mulheres ritmistas nas baterias das escolas de samba, mas essa abertura pode ser ainda maior. Até o surgimento de Dona Ivone Lara (1921-2018), a mulher não assinava um samba-enredo e isso mudou. Vejo uma tendência de as mulheres se assumirem como pagodeiras, e as gravadoras estão investindo nisso, e acho isso muito positivo.

Você é uma artista que gosta de conceito e isso se faz presente nos discos e nos seus DVDs. Nesse você decidiu fazer uma roda de samba. O que te levou a essa decisão?

Essa decisão tem a ver com a pandemia. Tudo isso que a pandemia provocou, todas essas mortes, o isolamento, tudo isso me deixou muito triste. Vi que a música não é só a minha profissão, ela tem também uma função terapêutica, de ajudar a lidar com questões internas. Tenho composições feitas ao longo da pandemia e meu plano era o de fazer um disco de inéditas, mas vi que elas tinham uma áurea muito melancólica e não era isso o que eu queria neste momento. Estava com sede de alegria. É como diz o samba do Arlindo (Cruz), que está no repertório: “Se perco no jogo do amor\ O samba é meu protetor, sim\Me tira do trauma da dor, da mágoa” (versos de “Nos braços da batucada”). O samba tem esse poder de nos tirar a mágoa. Vi que estava precisando cantar com o público e fazer essa catarse.

No show você terá a participação da Áurea Martins. Como vê essa redescoberta de cantoras como a Áurea e a Alaíde Costa que, como você, sempre foram firmes nos seus propósitos?

Num dos ensaios, a Áurea me disse que, certa vez, pegou emprestado o pó de arroz da Jovelina Pérola Negra (1944-1998). Essas mulheres detêm um conhecimento histórico sobre a nossa Cultura, sobre a História do Rio de Janeiro, e precisam ser reverenciadas por isso. A Áurea foi indicada recentemente ao Grammy e é importante que isso aconteça, ainda que tardiamente. O reconhecimento delas é importante também como uma resposta a essa questão do etarismo. No meio musical, há essa mentalidade de que se a cantora não fizer sucesso até os 40 anos, a carreira dela acabou. Isso é muito perverso, e essas mulheres mostram que a perseverança é importantíssima numa carreira musical. Elas merecem todo o reconhecimento que estão tendo.

Você homenageia Beth Carvalho, madrinha de muitos compositores e artistas. Vocês chegaram a ficar próximas? Ela chegou a te dar algum conselho?

A Beth tem uma importância valiosa na música brasileira. Ela era uma militante ferrenha do samba. Ela sabia como funcionava esse mercado, o quão competitivo ele é, a questão da importância dos hits, tudo isso ela conhecia bem. Ela era mais do que uma cantora; uma pesquisadora da música, uma mulher à frente do seu tempo. Nas primeiras vezes em que nos encontramos, ela me dizia assim: “você tem que ir com tudo para o samba”. Ela me dava esse aval e isso era carinhoso da parte dela. Recentemente, nos encontramos na Mangueira e falamos sobre fazermos algo juntas, mas a saúde dela já estava debilitada e isso não foi possível.

Você surgiu num programa de TV. Acha que atrações como o “The Voice” cumprem uma função que vai além do entretenimento?

Na época do “Fama”, ouvi do (Luís) Gleiser, que foi meu diretor, a frase: “Isso aqui é um programa de TV. É esse o papel dele”. Um programa de TV cumpre uma determinada função e, se a carreira do artista vai acontecer ou não, isso vai depender do que vier depois. As redes sociais estavam na pré-história quando comecei, a gente tinha o Orkut e olhe lá, e hoje têm uma força que não tinham. A força que tem hoje um Big Brother é enorme. Você passa por lá e vê, de uma hora para outra, um aumento de 30 mil seguidores nas suas redes sociais. Hoje, as redes são uma ferramenta que pode ajudar a alavancar uma carreira. A TV pode ajudar, mas existe o depois. E o resto é contigo.

E o que você tem ouvido de interessante na música?

Gostei muito do disco de estreia da Marina Sena (“De primeira”). Acho o trabalho dela genial. No mais, tenho ouvido as coisas de sempre: muito Moacir Santos, Bethânia, Simone e andei ouvindo muito a Alcione também. A Alcione tem uma trajetória espetacular na música. Já que falamos da Áurea, é importante a gente se conectar a essas artistas que representam muito da nossa brasilidade.

Por falar em brasilidade, você acha que, fazendo jus a um disco seu,  o Brasil pode voltar a ter dias de alegria mais belos do que estranhos?

Espero que sim. É importante tirar esse autoritarismo para termos o começo de um novo caminho. Essa mudança vai significar muito trabalho pela frente. A gente vive no Brasil uma crise generalizada em que a burrice dita as regras. Precisamos voltar àquele lugar da tolerância. E isso implica em gestos como o de parar de botar veneno na própria comida. A gente precisa respeitar os povos originários das florestas e resgatar uma consciência ambiental que começamos a ter e que foi perdida. Tudo isso vai levar tempo e vai exigir muita sabedoria.

Crédito da imagem: Pedro Butcher

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