Atores têm o dom de transmutar-se. Arlete Salles tem, como o mito da Fênix, o dom de renascer. A cada aparição sua, na cena ou na TV, é sempre uma nova Arlete, totalmente diferente da anterior. E isso provoca no público um fascínio a mais por essa grande artista, que está de volta aos palcos para celebrar uma carreira que já soma 65 anos. Em “Ninguém dirá que é tarde demais”, em cartaz no Teatro dos 4, no Rio de Janeiro, ela volta a trabalhar com Edwin Luisi e contracena com o filho, Alexandre Barbalho, e com o neto, Bruno Medina, autor também do texto, de fina carpintaria dramatúrgica. “O palco ainda me dá muita alegria, e meu ofício me dá muita força”, conta ela nesta entrevista ao NEW MAG, na qual fala do receio que teve em interpretar a despudorada Copélia no humorístico “Toma lá, dá cá”, da TV Globo, da quebra de preconceito, do desejo de pegar mais leve nos compromissos profissionais e de como lida com a finitude.
Você atua pela primeira vez na montagem de um texto do teu neto. Foi tranquilo separar a Arlete avó da Arlete profissional? Você deu muitos pitacos no decorrer da escrita da peça?
Não acompanhei de perto o processo da escrita, mas, depois de pronto, quando o texto foi para o palco, todos nós do elenco, num dado momento, demos pitacos. Isso é inerente à nossa profissão. Não dá para um ator ficar passivo ao que é proposto por um autor, repetindo somente o que foi escrito. Em alguns pontos discordamos e propostas são sugeridas, sempre com o intuito de aprimorar o texto.
Nessa produção, você contracena com o Alexandre, teu filho, e com o Pedro. O que cada um deles traz de novo a uma atriz tão experiente como você?
Como bem observado na pergunta, sou uma atriz com mais experiência do que eles, e isso vale para meu filho e para meu neto. É provável que eles tenham procurado me observar mais do que eu a eles. Acho que, no caso, haja uma inversão da história e talvez eu tenha contribuído com alguma coisa nova para eles dois, não sei… É uma pergunta que também precisa ser feita a eles.
Num dado momento da peça, você solta o bordão “Prefiro não comentar”, imortalizado pela Copélia, sua personagem em “Toma lá, dá cá”. Ela surgiu na TV num tempo em que o país não havia retrocedido tanto. Chegou a sofrer alguma retaliação em função da personagem?
No início, tive bastante receio. Achei de início ela tão ousada e pensei que aquela ousadia poderia ofender as pessoas por haver uma transgressão tão grande no comportamento daquela personagem que receei por ela. Quem me deu muita coragem foi o Roberto Talma, que era o diretor e que me falou que eu estava no caminho certo e que era para ir em frente. Ele me deu muita coragem e, para minha surpresa, a personagem foi lindamente aceita pelo público. A Copélia está no Canal Viva e fala-se dela até hoje. Sua aceitação foi surpreendente por ser ela corajosa, ter essa coragem de ser louca, de viver a vida como lhe desse mais prazer. Isso pode assustar as pessoas num primeiro momento, mas, depois, vemos que gostaríamos de ter a coragem dela para viver.
Na TV, você teve oportunidade de dar voz a diferentes mulheres como a Copélia e a recatada Carmosina, que perdia a virgindade tardiamente. O que a Arlete tem em comum com essas duas mulheres?
Não tenho nada em comum, no âmbito da minha sexualidade, com a Copélia e nem também com a Carmosina. Como diria minha avó, nem tanto, nem tão pouco. Nem tanto de uma virgem envelhecida e nem também uma mulher com tanta liberdade sexual. Mas posso dizer que tenho um pouquinho de cada uma.
Você viveu na novela “Lua cheia de amor”, a Kika, uma nova rica deslumbrada, que venerava a socialite vivida pela Susana Vieira. Acha que as redes sociais ajudaram a revelar outras Kikas? Como é sua relação com essas ferramentas tecnológicas?
Não acompanho as redes sociais, não sei nem como se faz isso e não quero ser influenciada por ninguém. Quanto a influenciar outras pessoas, quero fazer isso através do meu trabalho, do que eu possa levar às pessoas com personagens que apresentem suas inquietudes, suas reflexões… Ficar fazendo fotos com caras e bocas, fazendo a linha “vejam aqui como sou, o que tenho e aonde vou”, isso é muito distante de mim.
Você ajudou a derrubar preconceitos e a abrir a cabeça da sociedade em razão do seu relacionamento com o cantor e ator Tony Tornado. Hoje, o racismo está sendo discutido abertamente, inclusive no teatro. Chegou, na época, a sofrer algum tipo de cancelamento por ter peitado a escolha de viver aquela união?
Acho que não derrubei preconceito nenhum. Ainda hoje o preconceito existe. Há os antirracistas e há também os racistas e tem de se falar disso sempre, sempre e eternamente.
Muitos veteranos na TV verbalizam o desejo de terem mais oportunidades. Você sente que elas estão mais limitadas aos atores da sua geração?
Alguns atores com mais idade podem se queixar do afastamento ou mesmo do esquecimento, de cancelamento. Falo por mim: eu, Arlete, prefiro trabalhar menos. É um desejo meu trabalhar menos. Já trabalhei muito e, agora, preciso trabalhar menos. Como cantou Lenine, meu corpo pede um pouco mais de calma. Quero fazer uma coisa de cada vez. Se estou no palco, não posso gravar novela. Isso é para mim fisicamente impensável hoje. O palco ainda me dá muita alegria e meu ofício me dá muita força. No palco rejuvenesço. Ele me revitaliza. Ainda são esses os meus sentimentos em cena. Quando isso se apagar, será hora de ficar em casa.
Você já lutou bravamente contra um câncer e, nos últimos anos, sobrevivemos ao coronavírus. Como é hoje a sua relação com a finitude?
Fico muito triste de saber que, numa hora dessas, terei de partir. Eu amo a vida. Ela é um belo presente. Gosto da minha casa, amo meus filhos, meus netos e meus amigos. Saber que, algum dia, vou deixar tudo isso para trás e seguir rumo ao mistério me deixa triste. Não lido bem com a finitude, não, ainda que ela seja inexorável.