Leonardo Miggiorin se preparava para gravar quando ouviu de dois monstros do teatro uma reflexão que define bem a arte de interpretar: “ficou bom? Faz de novo. Teatro é assim”. Os atores eram Raul Cortez (1932-2006) e Ítalo Rossi (1931-2011), dois dos craques com os quais o ator teve o privilégio de contracenar ao longo de 25 anos de carreira. É justamente no teatro onde Leo mostra o ator vigoroso em que se transformou. Aquele menino franzino que, aos 19 anos, cativou o Brasil em “Presença de Anita”, cresceu, apareceu e, sim, precisou se reinventar (abraçando outras profissões) para aguentar o tranco da montanha-russa que é o mercado do entretenimento no Brasil. E o resultado é evidenciado em “Não se mate”, primeiro solo de sua carreira que ele apresenta no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) do Rio de Janeiro. “Podia estar em casa, mas estou no teatro validando o ator que sou”, constata ele nesta entrevista ao NEW MAG. Na conversa, por telefone, ele reflete sobre liberdade, exposição nas redes, o aprendizado com Marília Pêra (1943-2015), louva a simplicidade de Manoel Carlos, seu padrinho na TV, e lembra a vez que precisou posar para fotos com Angélica depois de perder seus pertences num assalto.
Logo de cara, o Carlos, seu personagem, lida com perdas importantes. Qual a perda mais sentida por você em pouco mais de 40 anos?
Na vida afetiva, foi minha avó, Elza Bevilaqua Miggiorin. Na vida profissional, foi a perda repentina do meu contrato de trabalho com uma emissora com a qual estava ligado há 15 anos. Perder um contrato acarretava na perda de status e de benefícios como plano de saúde, por exemplo. Foi difícil entender as novas relações trabalhistas. O mundo mudou e, hoje, não tenho só um tipo de contrato. Sou professor, dou aulas, trabalho como psicólogo, mas o teatro é o meu berço. Cresci com a ideia de que as coisas seriam permanentes e foi muito difícil constatar a impermanência da vida.
A peça é corajosa ao mostrar como é difícil viver no Brasil de hoje. Qual o maior perrengue que precisou driblar?
Foram vários. Logo no início da carreira, morando ainda em Curitiba, vinha de ônibus gravar no Rio, voltava para estudar e já aconteceu de dormir na rodoviária enquanto esperava o ônibus. O perrengue mais brabo foi quando fui assaltado no ônibus que me levava ao Projac. Me levaram tudo, e precisei descer e pedir dinheiro em um hotel, onde fui socorrido pelo gerente. Segui meu caminho e, no Projac, fiz fotos com a Angélica para promovermos a atração em que trabalhávamos. Fui naquele dia do oito ao 80. Cumpria aquele protocolo pensando que ninguém ali imaginava o que me havia acontecido horas antes. Quem vê close não vê o corre.
Nossa geração pegou a transição entre a vida analógica e a tecnológica. Como lida com essa ditadura de que o artista tem de postar e opinar sobre tudo?
Já fiquei afastado das redes por um tempo e voltei a elas em razão de exigências do mercado. Relutei por um tempo da ideia de autopromoção, mas o fato é que você precisa existir ali. Os classificados e a TV estão também lá. Dia desses, decidi postar um vídeo em que falava um poema do Drummond e, para minha surpresa, o vídeo teve mais de 22 milhões de visualizações. Então a poesia também interessa? Penso que a rede pode ser uma ferramenta aliada ao trabalho do ator. Acho que a ditadura vem quando você se obriga a fazer algo em que não acredita.
Você é um ator que, de “Presença de Anita” para cá, amadureceu aos olhos do público. O que isso trouxe de prazeroso e de perverso?
O público viu como mudei ao longo dos anos e isso é bom. As pessoas querem exemplos de superação e isso ficou claro da pandemia para cá. O público não quer uma vítima. A abordagem pode ser ingênua algumas vezes, mas é sempre muito afetuosa. O mercado me levou a me autoproduzir para, a partir disso, ter oportunidades de trabalho. Hoje entendo esses meandros e não desistir é a grande questão. Podia estar em casa, construindo algo para mim, mas estou no teatro validando o ator que sou. O teatro me ensina a não desistir.
“Cobras e lagartos” está sendo reprisada. O que fica do privilégio de contracenar com Marília Pêra?
A Marília já chegava pronta ao estúdio, antes até do horário, e estava sempre pronta para o trabalho. Muitas vezes, ao contracenarmos, ela indicava que tinha gostado mais de um jeito de eu dar o texto do que de outro, e me dava conta do privilégio de ser também dirigido por ela. Ela tinha um respeito imenso pelo próprio trabalho, e as pessoas só vão te respeitar se você respeitar a si próprio. A Marília foi uma atriz que sempre renasceu das cinzas e voltou à cena como uma Fênix.
Você teve oportunidade de atuar em três diferentes produções escritas pelo Manoel Carlos, que terá a trajetória contada num documentário. Qual a principal marca do Maneco?
As marcas que ficam são a do afeto e a da generosidade. O Maneco é todo ele um grande abraço, uma pessoa fora da curva. Ele é a pessoa mais generosa que conheci na televisão. Ele poderia ter se tornado arrogante ou debochado, como calha de acontecer na televisão, mas não. Ele tem um olhar afetuoso para o outro e não somente aos artistas. Ele assistiu ao meu teste e me escolheu para interpretar o Zezinho, e ganhei ali um presente para a vida. O Zezinho marcou minha vida e, a partir dele, minha trajetória na televisão. Levo comigo essa percepção sobre o Maneco, a de que é possível ser generoso sem deixar de ser um grande artista.
O que ainda falta realizar?
Quero me tornar diretor. Fui levado a essa peça a partir de alguns questionamentos pessoais. Quem é o Leonardo agora? Quem precisa da minha arte? E fiz esse monólogo um pouco como quem lança uma garrafa ao mar. No teatro e na vida é assim: tudo pode dar certo e também não dar. Tá difícil? Espera. Tá ruim? Faz de novo. Certa vez, na Globo, ouvi o Raul Cortez e o Ítalo Rossi falando sobre o ofício do ator e fiquei com essa frase na cabeça: ficou bom? Faz de novo. Teatro é assim. No caso desse monólogo, me perguntei se daria conta. Se ninguém gostar, tudo bem. Se ninguém for, eu fui.
Refaço a você a pergunta feita pelo teu pai no espetáculo: você é livre?
Não sou livre. Estou inserido num mundo que me impõe limites, e a vida nos exige que estejamos em relação com ela. Ela me exige disciplina, quer que tenha um propósito e me impõe uma missão. Tenho contas a pagar e, para isso, preciso ganhar dinheiro. Luto para ter conforto e reconhecimento, pois, de outra maneira, poderia desistir de tudo para fazer valer minha liberdade de escolha. Acontece que não vou me entregar. Vamos viver como for possível. Liberdade? Não sei o que é isso.
Crédito da imagem: Neto Lins