‘Nunca interpretei um homem’

janeiro 31, 2025

Irene Ravache brilha no teatro aos 80 anos e celebra a jovialidade, critica a leniência do país com a corrupção e diz querer viver um papel masculino: "há muito a fazer"

Na música “Tempo e artista”, na qual Chico Buarque homenageia Dorival Caymmi (1914-2008), o compositor diz que o artista “abre a voz, e o tempo canta”. O verso vem muito bem a calhar quando se trata de Irene Ravache. A atriz celebra seus 80 anos no palco, seu habitat (mais do que) natural, onde exerce – com a excelência que é uma de suas marcas – o  ofício por ela escolhido e que também a acolheu. A peça em questão é “Alma despejada”, que cumpre sua segunda temporada no Rio de Janeiro (desta vez no Teatro Fashion Mall). E, na trama, Irene vive uma mulher que, depois de morta, volta à casa onde viveu para passar sua vida a limpo. E a atriz está ali por inteiro e não poderia ser diferente. “Meu temor é o de perder a jovialidade”, explica ela nesta entrevista por telefone ao NEW MAG. A seguir, ela critica a leniência do Brasil com seus corruptores, rasga seda a Juca de Oliveira e a Fernanda Torres, fala do vazio deixado por Ney Latorraca (1944-2024), através de quem conheceu Edson Paes, seu marido há mais de 50 anos, e diz que não se acha capaz de interpretar um homem. Pura modéstia em se tratando de uma atriz do quilate de Irene Ravache.

Aos 80 anos você tem mais uma vez a oportunidade de mostrar a grande atriz que é. O avançar do tempo te aflige? Como lida com isso?

Meu temor é o de perder a jovialidade. Você pode ser jovem e não ter jovialidade. Você pode ser um jovem pesado e acabrunhado, por exemplo. E você pode ter a idade que for e preservar sua jovialidade. Temos Rosamaria Murtinho e Othon Bastos atuando nos palcos, e é uma beleza isso! Em poucas profissões o ser humano se expõe tanto quanto em um palco. O teatro é extremamente vital, mas se você não tiver leveza, ele não te revigora.

E, em relação às perdas dos amigos e de colegas de geração, está lidando com elas de forma serena?

As perdas foram se avolumando a partir da Covid. Elas nos dão uma dimensão da nossa própria fragilidade. A perda do Ney (Latorraca) foi especialmente dolorosa. Você sabe que ele e a mãe que me apresentaram ao meu marido? E estou casada com o Edson desde 1971! Na véspera da morte dele, senti um aperto no peito e mandei uma mensagem. Não sabia que ele estava internado.

Tem medo da morte?

Tenho. Até porque não sei o que vou encontrar por lá (risos). Somos criaturas humanas e estamos suscetíveis a certos acontecimentos. O que sou aprendi com meus pais. Hoje, não tenho certezas de nada e nem quero ter.

A peça trata de um tema muito importante que é a corrupção em seus diferentes níveis. A corrupção é inerente ao Brasil?

Não. A corrupção é inerente ao ser humano. Acontece que, em outros lugares, você sabe que passará por alguma penalidade  enquanto que,no Brasil, a falta de punição é gritante. Quando você sabe que a sua corrupção não dará em nada fica mais fácil praticá-la. E isso vale para qualquer pessoa. A embriaguez da corrupção te tira da realidade. No caso da minha personagem, será que ela não desconfiava do marido? Não se pode ser ingênuo quando se é mais velho.

Lembro de vê-la no teatro contracenando com colegas à sua altura, como Regina Braga e Marcos Caruso. O que um colega precisa ter para te cativar?

Ele precisa gostar do jogo e ter leveza, e essa leveza não significa descompromisso. Até porque, se fosse essa a questão, não ficaria tantos anos em cartaz ao lado desses colegas todos. Esse colega precisa também estar disposto a rever o que ele está fazendo. A cena tem sempre algo mais a dar para a gente. É necessário que ele tenha prazer em ouvir. Muitas vezes fui espectadora dos meus colegas. Gostava de ver o Juca (de Oliveira) atuando pelo simples prazer de ouvi-lo.  E contracenar está nisso.

Em entrevista ao site, a atriz Maria Padilha disse que, hoje, prioriza mais as parcerias do que os papeis no teatro. Concorda com ela?

As parcerias são de fato importantes. Certa vez, fui chamada para conversar com um grande ator que me perguntou quantos Molière eu tinha. Disse que três, no que ele, que tem também o mesmo número, me perguntou se não estaria na hora de juntarmos nossos prêmios num trabalho. Como a fama dele era de difícil , respondi que preferia continuar sendo sua admiradora e de “vir à sua casa como amiga, como faço agora”. E a conversa terminou com nós  dois às gargalhadas.

Na torcida para Fernanda Torres ganhar o Oscar?

Sim O filme é excelente, com elenco muito bem escolhido, e Fernanda se coloca ali no fio da navalha. Ela está extraordinária, e disse isso à Fernandona (Fernanda Montenegro).  Lembro da estreia da Nanda no teatro, em “Rei Lear”, com o Sérgio Britto. Ela se achava bochechuda e não se conformava com isso (risos). “Ainda estou aqui” é o filme mais bem dirigido pelo Waltinho (Walter Salles). O momento mais emocionante para mim é quando aquela família precisa deixar a casa no Rio para viver em São Paulo. Vivi também aquele momento e assisti à cena com lágrimas nos olhos.

Algum papel que ainda pretenda interpretar?

Nunca interpretei um homem. Gostaria de viver um papel masculino sem cair no estereótipo do homem. Gostaria de chegar na alma da interpretação de um homem, afinal somos muito diferentes. Seria como mergulhar no desconhecido, e não sei se me sinto capaz disso.

E outro que queria ter interpretado e que não foi possível?

(Irene fica em silêncio). Queria muito ter interpretado a Norma Desmond (de “Sunset Boulevard”), e a Marisa Orth acabou fazendo. Não é exatamente o musical que mais amo, mas gosto muito daquela personagem. Assisti ao musical em Londres e acho as músicas lindas. Nunca procurei os personagens que interpretei. Eles é que sempre chegaram a mim.

E o que falta ainda realizar?

Muita coisa! Lembro de, nos anos 1980, comprar os volumes da (enciclopédia) Barsa e de me prometer que leria aquilo tudo. Nada disso aconteceu, claro. Não foi possível dar conta. E, mesmo que tivesse dado conta, as coisas não parariam de acontecer. E vão continuar acontecendo! Somos atropelados por acontecimentos. Há muita coisa ainda para acontecer e muito também a fazer.

Créditos: Christovam de Chevalier (texto) e João Caldas (foto)

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