Ludmilla Bauerfeldt tinha 22 anos quando ouviu de Sergio Lavor, seu professor no Conservatório Brasileiro de Música, uma sentença que mudaria sua vida. “Você é uma cantora lírica”, decretou o experiente cantor à então atriz. A julgar pela ovação que irrompe no Theatro Municipal ao fim de “Suor Angelica”, uma das operetas de Puccini (1858-1924) que integram “Il Trittico”, espetáculo com que Municipal celebra seus 115 anos, Lavor tinha mesmo razão. Ludmilla Bauerfeldt é hoje, uma das cantoras líricas mais incensadas da atualidade.
Interpretar a freira que tem sua quietude perturbada pela notícia da morte do filho nunca passou pela cabeça da artista. Ela já havia dado, em apresentações, voz a outras heroínas do autor como Mimi ou Musetta, ambas de “La bohème”. Mas “Suor Angelica” era algo impensável. Feito o convite, um fato precisou ser transposto para a intérprete chegar à dor da personagem. Ludmilla concilia a carreira com os cuidados com Lorenzo, seu primeiro filho, de 2 anos e 4 meses.
– Meu primeiro passo na preparação foi tirar de cima do piano todas as fotos do Lorenzo – revela ela, reconhecendo que o trajeto foi árduo: – Nas primeiras tentativas de cantar eu chorava e chorava… Até que consegui aliar essa aproximação da personagem do distanciamento daquela realidade. Quando estava sabendo as árias de cor, vi que era o momento de ir para o palco.
E a bagagem de atriz foi fundamental para Ludmilla apropriar-se da vida daquela mulher. A récita é curta, mas plena de carga dramática. E Ludmilla chega a ficar sozinha em cena longos minutos, como ela ressalta:
– Suor Angelica é uma personagem muito visceral. A dor dela vem antes do canto e de tudo mais. Começo num registro mais grave e vou crescendo. Finda a récita, o corpo cobra seu preço e saio do palco dolorida, mas vale a pena todo o esforço.
E o contato com a dor não está somente no âmbito físico. A personagem é afastada do filho pequeno e segregada ao claustro por ser considerada inadequada por sua família, situação que permeia as vidas de muitas outras mulheres. A questão levou a cantora a se (re)conectar com as mulheres da sua família que a precederam.
– A dor é visceral e também ancestral. E, através desse papel, pude me conectar com minha própria ancestralidade, com as dores enfrentadas pela minha avó, pela minha mãe e pelas minhas tias. São mulheres que, ao longo dos séculos, precisaram lidar com diferentes perdas: a de filhos, a de relacionamentos, sem falar na da própria individualidade.
E o resultado de tanto labor é reconhecido pelo público que tem lotado o Municipal. Ao fim de cada récita, as palmas misturam-se a gritos de “Brava!” numa algazarra legítima e merecida.
E para encarar o rojão, Ludmilla toma uma série de cuidados. Um deles é o de se alimentar muito bem horas antes de cantar. Na estreia, por exemplo, ela encarou um café da manhã reforçado e não abriu mais a boca ao longo do dia. Sim, outro cuidado é o de poupar a voz nos dias de récita, o que, convenhamos, fica um pouco difícil na lida com o filho pequeno…
– O Lorenzo praticamente nasceu no Municipal. Lembro que, nos ensaios da “Traviatta”, estava ainda amamentando e o levava comigo. Esse é o primeiro trabalho com o qual me envolvi sem levá-lo comigo. O pai assume os cuidados para eu poder trabalhar – entrega ela.
E é bom constatar que, um século depois, uma mãe precisa afastar-se do filho para… exercer seu ofício. E o de Ludmilla Bauerfeldt é sublime. Bendito seja Sérgio Lavor.
Crédito das imagens: Filipe Aguiar