Era para ser um encontro sobre cinema – ou sobre a relação de Caetano Veloso com a sétima arte, fundamental na sua formação pessoal e profissional. Mas o compositor tratou também da sua trajetória no lançamento de “Cine Subaé – Escritos sobre cinema (1960-2023)”, livro organizado por Claudio Leal e Rodrigo Sombra com textos do artista sobre cinema. E o que era para ser um bate-papo, acompanhado por NEW MAG, virou uma aula-espetáculo. “Sou doido e vou falando”, explicou Caetano, num dos eventuais parêntesis abertos em suas falas. E eles fizeram a alegria do público que lotou o Teatro Clara Nunes, no Rio de Janeiro, na noite da última terça-feira (21). O ingresso dava direito ao livro e parte da renda foi destinada às vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul, numa ação do movimento 342 RS que envolveu também a Cia das Letras e a Janela Livraria.
Caetano foi falando e, doido ou não, demonstrou, mais uma vez, a lucidez com que reflete sobre o mundo, e tão bem ramificada no seu cancioneiro. O tal parêntesis supracitado tem a ver com a relação do cantor com a matemática, uma ciência lógica, e que, com o passar do tempo, foi transformada pelo olhar do seu filho mais velho, o músico Moreno Veloso, físico por formação, como ele explicou:
– A matemática, por ser lógica, nunca me fascinou. Era aquela coisa: dois mais dois são quatro e não havia surpresa nisso. Eu era antimatémático. O Moreno me ensinou muito. A ver filmes, inclusive. Ele me ajudou a compreender melhor coisas do (Serguei) Eisenstein, por exemplo.
Moreno colaborou – e muito –, mas o arrebatamento pelo cinema vem de bem antes. Caetano tinha uns 15 anos quando, ainda em Santo Amaro da Purificação, assistiu a “La strada”, de Federico Fellini (1920-1993), numa matinal (sessão das 10h ao meio-dia). – Voltei para casa e nem consegui almoçar. Fiquei chorando no quintal. Foi um impacto muito grande – reconheceu.
O primeiro ímpeto para dirigir cinema manifestou-se logo após a volta do exílio em Londres, no início dos anos 1970. E foi provocada por um livro reunindo depoimentos sobre Carmen Miranda (1909-1955), lançado após a morte da cantora. O depoimento do compositor Assis Valente (1911-1958), sucinto em relação aos demais, foi a mola propulsora para o projeto, nunca realizado, e que envolveu também a cantora Gal Costa (1945-2022). .
– O livro trazia depoimentos longos, de duas, três páginas, e o do Assis era uma frase apenas e dizia assim: “No dia em que Carmen Miranda foi para os Estados Unidos minha vida acabou”. Quando voltei do exílio, Gal apresentava o show “Fa-Tal” e a imagem dela tocando violão com as pernas abertas, as coxas aparentes e um fiapo de vestido cobrindo as partes íntimas foi fundamental para querer vê-la no papel de Carmen – lembrou ele, que acabou chamando Walter Lima Jr para ajudá-lo na empreitada.
O então jovem cineasta implicou com Dazinho, que interpretaria Valente, cujo phisique du role fugia dos padrões estéticos do cinema:
– Walter não achou Dazinho bonito. Se pensarmos em “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, o galã é Geraldo Del Rey, um homem louro, de olhos claros, muito mais bonito do que muitos galãs de Hollywood. O fato é que Assis Valente era um homem bonito, maais do que Carmen.
A incursão como diretor aconteceria 14 anos após a volta do exílio, mais exatamente com “O cinema falado”, lançado em 1986. A experiência fez com que o compositor mudasse – ainda que temporariamente – um hábito que o acompanha há tempos: o de acordar tarde.
– Vou dormir com o dia nascendo e, na época, tinha de acordar às 7h30 para acompanhar a preparação para a filmagem. Acordava de manhã e achava delicioso. Gostei da vivência que envolve a movimentação para fazer um filme, tanto que nem me preocupava como ficaria o resultado – reconheceu ele.
Depois da pandemia, Caetano não voltou a frequentar as salas de cinema com a assiduidade de antes. E acaba por ver filmes pela TV. Mas engana-se quem pensa que o compositor é do tipo que maratona séries, pelo contrário. Leitor contumaz, o artista faz uso parcimonial da TV:
– Não acompanho séries. Paulinha é que vê, e acabo vendo uma coisa ou outra ao lado dela. Ainda que sejam produzidas no mundo todo, as séries têm um jeito de serem feitas que vem de Hollywood e tenho um instinto de defesa quanto a isso. Assisto às notícias e, depois, mudo para o Multishow por causa dos programas de humor. E acabo assistindo a filmes também. Com o fim da pandemia, tenho ido ao cinema menos do que gostaria.
A colaboração para o cinema não está restrita ao “Cinema falado”. Caetano chegou a atuar em longas de Cacá Diegues e de Julio Bressane (“Sou péssimo ator, um canastrão terrível”) e contribuiu para trilhas. Após compor o samba “Pecado original” para “A dama do lotação”, um telefonema deixou o compositor bastante orgulhoso:
– O Nelson Rodrigues me telefonou e me disse assim: “Caetano, que você brilhe como o sol até o fim dos tempos”.
Hoje, aos 81 anos, Caetano é um farol a iluminar as trevas que, eventualmente, assombram o país. O Brasil precisa, com a licença de Adriana Calcanhotto, comer Caetano – e, assim, nutrir-se de sua lucidez. Pois, como bem disse Djavan, isso é o que há de bom.
Crédito das imagens: Verônica Pontes, Marcelo Borgongino, Ricardo Portilho e Christovam de Chevalier