Em 1991, a novela “O dono do mundo”, escrita por Gilberto Braga (1945-2021), pegou de jeito os brasileiros. O elenco trazia feras como Fernanda Montenegro e Antonio Fagundes e revelou ao país uma atriz por quem o público não demorou a se encantar. A moça em questão era Letícia Sabatella, atriz mineira que cresceu em Curitiba (PR), para onde a família mudou-se quando ela tinha 4 anos. Foi lá onde Letícia deu seus primeiros passos artísticos e cultivou amizades que a alimentam até os dias de hoje. A troca com os amigos de lá levou-a a aventurar-se pela leitura e pelo estudo da “Ilíada”, poema épico de Homero e marco da literatura ocidental. Dessa incursão sai “Ilíada”, espetáculo que divide com Daniel Dantas, seu companheiro, e que estreia, no início de março, no Teatro XP, na Gávea, Zona Sul do Rio de Janeiro. O entusiasmo pela volta aos palcos reluz nos olhos da atriz, que está cheia de planos para o futuro. Um deles é o de uma série documental sobre lideranças femininas em diferentes rincões do país, do Nordeste à região Sul. “Pego um 4X4 e entro 10 mil quilômetros para dentro do Brasil”, conta ela ao NEW MAG antes de encarar, na última terça-feira (07), sua estreia nas passarelas. Letícia é do tipo de mulher que não teme desafios, sejam eles quais forem. E o público é quem sai ganhando.
Você volta aos palcos este ano com uma montagem criada a partir da “Ilíada”, de Homero e um clássico da literatura. Como surgiu essa proposta e como você se aproximou dela?
Tenho grandes amigos em Curitiba e eles fazem saraus, onde nos reunimos de quando em quando e é uma fonte na qual eu gosto muito de beber. Minha identidade musical vem muito dali também. Um desses grandes amigos é o Otávio Camargo, professor de Música e História na Escola de Belas Artes (e diretor da montagem). Ele trabalha muito com a “Ilíada”, do Homero, a partir da leitura do Odorico Mendes que, em 1835, fez uma tradução muito poética, trovadoresca e muito picaresca, toda em decassílabos e com neologismos. Nessa versão, muitos pontos da narrativa acabam mais próximos da cultura portuguesa e, consequentemente, da nossa cultura. É um empreendimento muito bacana.
Recentemente o Bruce Gomlewsky estrelou o monólogo “Uma ilíada”, com tradução do Geraldo Carneiro, e há também a célebre montagem de “A Odisséia”, com direção do Carlos Wilson. O que a montagem de vocês terá de diferente das demais?
O texto é a tradução feita pelo Odorico Mendes a partir da obra do Homero, que respeita o decassilábico e traz palavras inventadas no português. Muito do que a gente vê no (João) Guimarães Rosa (grande nome da literatura moderna brasileira), por exemplo, vem da “Ilíada”, do Homero e vem do Odorico. O Daniel (Dantas) interpreta o primeiro canto e eu faço o vigésimo e, assim, apresentamos esses dois monólogos em cena. E o tom picaresco da tradução tem muito da nossa brasilidade. A cada mudança de personagem, a luz muda nossas feições – e muda mesmo! O meu rosto vai deformando, por exemplo. O técnico de luz é aplaudido ao fim das apresentações.
O primeiro canto é “A peste” e o vigésimo…
É quando os deuses entram na batalha, quando tomam partido. Netuno acaba por ajudar Enéas e Aquiles, Apolo ajuda os troianos, e Palas (Atena) ajuda os gregos. Os deuses vão se colocando e aparecem atuando na batalha.
E você e Daniel Dantas vão trabalhar juntos no teatro então…
O Daniel é, para mim, um dos maiores atores vivos do planeta! Ele é de uma riqueza porque junta nele o palhaço, o trágico, a sofisticação e o despojamento. Ele tem qualidades que não sei se são hereditárias, se vieram do Nelson (Dantas, pai do ator) e da Andréa (Dantas), irmã dele. Daniel foi casado com a Zezé Polessa, outra gigante… Há toda uma História de teatro nele. Durante a pandemia, ele estudou grego e sabe o canto dele todo em grego. Ele é um ator carioca que eu acho um luxo no mundo.
E como você está se preparando para essa empreitada?
Estou me preparando fisicamente. No Festival de Curitiba foram apresentados todos os cantos da “Ilíada” por 24 atores, e tudo isso foi construído com muito prazer e muito estudo, de matérias como astronomia, por exemplo. Os gregos olhavam as estrelas, viam as constelações e, de lá, tiravam muitas das suas estórias. Queremos trazer o Otávio (Camargo) para dar aulas e, de repente, levarmos as pessoas ao Planetário. A “Ilíada” nos ajuda a nos compreender muito.
Você tem enveredado pelo canto. Sua primeira gravação foi ao lado da Elza Soares, no álbum “Do coccix ao pescoço”, no qual ela gravou uma parceria contigo… Qual a lembrança mais marcante que fica da Elza?
A força interior dela. Elza era como Piaf. Temos a imagem da passionalidade, daquela mulher intensa, mas há também outro lado. Todas as vezes em que estive com a Elza, encontrei uma mãe, no sentido da doçura, da generosidade, da educação e sabedoria. Ela fez uma música junto comigo e me colocou para cantar com ela. A Elza me abençoou muito.
E como surgiu a parceria entre vocês?
Fomos nadar num rio e ouvimos a cigarra cantando. Ela dizia que eu era cantora e repetia que eu iria cantar. O que ela fez foi inacreditável e muito generoso. Havia a Elza estrela, mas ela sempre foi para mim uma pessoa mais humana, de musicalidade e poesia muito livres. Numa conversa com ela, saíam três letras de música. Ela tinha uma inteligência fora do comum.
E como anda a Letícia compositora?
A compositora está calma. Ela precisa sentar e compor mais. Fiz um trabalho com esses meus amigos de Curitiba, o Troy Rossilho, com arranjos para violões do Fabiano Tiziu que ficou muito bonito. Continuo fazendo o “Caravana tonteria” e cantei, recentemente, com o Paulo Braga Trio. Minha vida passa por muitas mudanças neste momento. Para compor e cantar, preciso parar, pensar um projeto. O que sei é que essa necessidade está voltando.
Essa proximidade da “Ilíada” motivou em você a vontade de escrever roteiro ou fazer algo dentro da literatura?
Durante a pandemia comecei a escrever um roteiro para cinema. Quando o argumento estava pronto, soube que já tinham comprado os direitos sobre aquele projeto, o que me deu muita tristeza. Mas quero muito escrever e criar.
Você volta a fazer cinema este ano?
Estou fazendo uma série documental, viajando pelos sertões, por um Brasil profundo, pelo interior do Nordeste, interior de Minas, o Vale do Jequitinhonha, a Caatinga, o Sul do país, Santa Catarina… Pego um 4X4 e entro 10 mil quilômetros para dentro do Brasil. Estamos indo ao encontro de mulheres que transformam, que sustentam, que organizam a sua comunidade. Estou aprendendo demais com elas. Tá sendo muito inspirador isso. Sou eu que escrevo os offs e acabo colaborando com o roteiro.
Tem planos de enveredar pela direção de cinema?
Tenho vontade. Estávamos vivendo essa necessidade tão urgente de sobreviver nos últimos anos, de permitir que outras pessoas vivessem, que os povos indígenas não fossem destruídos e isso, confesso, me deixou um pouco desnorteada.