‘Minha igreja são os meus próprios atos’

março 15, 2024

Heloísa Perissé fala do que mudou na vida ao driblar um câncer, da relação com a fé e revela o desejo de encenar autora francesa e de contracenar no teatro com Matheus Nachtergaele

Heloísa Perissé tem no humor uma de suas características mais latentes. Inteligente e perspicaz, ela faz o Brasil chorar de rir a cada novo personagem – e eles não são poucos. Heloísa é também uma atriz que, destemida, sujeita-se aos riscos impostos pela profissão. E isso foi corroborado nas novelas em que atuou, mostrando ao público outra de suas marcas: a versatilidade. Esta é, aliás, uma das molas propulsoras na vida de Lolô, como é carinhosamente chamada pelos amigos desde os tempos em que começou a chamar atenção no Tablado, celeiro de talentos fundado por Maria Clara Machado (1921-2001). Danada que só, Lolô manda bem na escrita e assina, desde então, os textos que leva ao palco. Foi assim com “Cócegas”, comédia que deu vulto ao seu nome e ao de Ingrid Guimarães. E é assim com “Loloucas”, na qual divide a cena com Maria Clara Gueiros e que, neste Mês da Mulher,  está de volta ao Rio de Janeiro, em temporada no Teatro das Artes. “A vida é feita de paradoxos que podem se harmonizar e sou pró-vida”, comenta ela, por telefone, ao NEW MAG. A vida é, aliás, um dos temas da entrevista a seguir, na qual a atriz fala da sua relação com a fé, da criação das filhas, do aprendizado ao driblar um câncer e dos planos de encenar peça da premiada escritora francesa Yasmina Reza e do desejo de trabalhar no teatro com três talentos da sua geração.

É comum o humor recorrer a apetrechos  para a caracterização. No teatro, você e Maria Clara fazem mais uso do corpo e da voz. O que foi mais difícil nesse caminho?

Nós fomos construindo aquelas duas mulheres de maneira muito orgânica. Não vou menir: o processo foi todo muito fluido e nos deixamos conduzir pelo olhar e pelas propostas do Otávio. Estamos em cena com perucas e com nossos figurinos, mas somos mulheres que estão sujeitas ao tempo, ao tempo que é real, seja ele o da vida ou o do teatro. Somos amigas há muito tempo e temos, cada uma, nossas vivências. E, ali, em cena, somos eu e ela.

Loloucas surge a partir de reflexões sobre a sua chegada aos 50 anos… A proximidade dos 60 inspira uma peça?

Já escrevi a vida inteira e coloquei muitas das minhas vivências no papel. Agora, com a proximidade dos 60, quero levar ao palco o texto de uma terceira pessoa, alguém com quem me identifique.

E já tem essa pessoa em mente?

A Yasmina Reza.

Você e Maria Clara voltam a se encontrar no palco tendo muito em comum. Um dos elos é o de terem convivido com o professor e diretor teatral Bernardo Jablonski. Qual aprendizado do Bernardo você coloca em prática até hoje?

O Bernardo foi a primeira pessoa que conheci assim que cheguei ao Rio. Ele era amigo do meu irmão, que deu nele um toque de que eu era atriz, e o Bernardo acabou se tornando também um irmão. Vem dele muito desse amor que tenho pelo teatro. Eu vejo o teatro como uma experiência construtiva e isso vem muito dele. O teatro é um lugar agregador, ele é assim.

Você costuma trabalhar com grandes amigos… Foi assim com a Ingrid, com a Clara e com o saudoso Luiz Carlos Tourinho. Com que grande amigo falta trabalhar no teatro?

Adoraria poder trabalhar no teatro com o Matheus Nachtergaele, com quem já trabalhei na TV (na série “Cine Hollywood”). O Marcelo Serrado e o Du Moscovis são dois atores com os quais gostaria muito de trabalhar também pela relação que eles têm com a profissão.

A Tati foi uma personagem que cresceu e ganhou vulto com filme e livro próprios. Algum personagem te surpreendeu por ficar no chão quando achou que ele voaria?

Nunca tive esse tipo de frustração com uma personagem, até porque cada construção é uma aposta, e você quer que aquela aposta dê certo. Sempre me interessei mais pela construção da estória em si do que pela construção de um tipo. Para mim, hoje, o caminho é mais importante do que o objetivo. O processo é o que me deixa realizada, isso é hoje o que me faz feliz.

Você teve oportunidade de viver na TV a maior humorista deste país. Com o perdão da expressão, chegou a sentir cagaço com o desafio?

Cagaço algum e vou explicar o porquê: estava fazendo novela (“Avenida Brasil”) quando me veio a ideia de levar à TV uma minissérie sobre a Dercy. Pesquisei se havia algum livro sobre ela e vi que havia um, escrito pela Maria Adelaide Amaral (“Dercy de cabo a rabo”). Eu a procurei e, na época, ela estava comprometida em fazer um trabalho no teatro com a Fafy Siqueira. O tempo passou e quando estava prestes a estrear um espetáculo em São Paulo, telefonei para a Maria Adelaide para convidá-la a me assistir e ela me disse: “Nossa, estava mesmo atrás de você”, e retomamos aquela ideia.

Como é para você ver a Tonton dar seus próprios passos como cantora e compositora? Aquela máxima de que os filhos são para o mundo vale para você?

Crio meus filhos para o mundo. A forma como crio minhas filhas está relacionada à minha relação com a vida e com a morte. Quero que, a partir do momento em que eu não esteja mais aqui, elas caminhem com as próprias pernas. É importante termos essa consciência sobre o tempo que resta. Não sou eterna. Uma coisa que repito para elas é que não sou eu a protagonista das vidas delas.

Você abraçou por um tempo uma religião pentecostal. Convivendo com artistas,  sofreu algum preconceito por ter seguido essa crença?

Não, isso nunca me aconteceu. Na realidade, eu não tenho mais religião, tenho fé. A fé é outro estágio e ela move montanhas, sejam elas concretas ou metafísicas. Não tenho mais religião, sou pelo religare e não mais pelo dogma. Minha igreja são os meus próprios atos e como me manifesto através deles todos os dias. O que te faz estreitar laços com o Divino são as tuas atitudes.

Qual o principal aprendizado que resta do enfrentamento de um câncer?

Muita gente comenta que foi ali que despertou essa minha consciência da fé. Há no “Livro de Jó” uma passagem que ilustra bem a relação que tenho com Deus. Ela diz assim: “Antes, ouvia falar de você. Hoje, te conheço”. Não vou mais a uma igreja, mas pode ser que volte no futuro. A igreja é um templo, mas ela não está situada num único lugar. O teatro é uma igreja, um bom  livro é uma igreja e esta entrevista aqui pode ter essa função para alguém que a leia. A vida é feita de uma série de paradoxos que podem se harmonizar, e eu sou pró-vida.

Na sitcom “Sob nova direção”, você e Ingrid viviam duas mulheres que tentavam empreender e sempre algo dava errado, num retrato muito fiel do país. Já pensou em desistir do Brasil?

Já pensei várias vezes em desistir do Brasil. Por outro lado, penso melhor, vejo que meu lugar é aqui e desisto de desistir do Brasil. Hoje tenho essa consciência de que nós somos o nosso melhor lugar.

Há uma fala sua que me marcou muito e que te devolvo em forma de pergunta: somos cegos guiando cegos?

Sim, somos cegos guiando cegos. Depois que li sobre o mito da Caverna, a partir do Platão, a humanidade derreteu para mim. Um dos temas apontados pelo Platão tem a ver com o orgulho. A gente precisa se ocupar em falar menos e se preocupar mais em como sair dessa caverna.

Crédito da imagem: André Wanderley

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