‘Meus pais jogaram limpo sobre o que acontecia’

fevereiro 2, 2024

A atriz Sílvia Buarque fala sobre sua trajetória, a estreia na TV aos 18 anos, o legado dos pais, Marieta Severo e Chico Buarque, e o aprendizado com a filha adolescente

Sílvia Buarque está de volta aos palcos, seu habitat natural. Ela produz e atua em “A menina escorrendo pelos olhos da mãe”, na qual contracena pela primeira vez com Guida Vianna, uma de nossas maiores atrizes. Na peça, magistralmente escrita por Daniela Pereira de Carvalho e dirigida com sensibilidade por Leonardo Netto, Sílvia mostra mais uma vez a atriz potente que é. A artista tinha 18 anos quando ganhou notoriedade na novela “Corpo santo”, exibida pela TV Manchete em 1987. E aprendeu seu ofício na prática, sob a tutela de importantes encenadores, conquistando, aos 54 anos, seu lugar entre os grandes talentos da sua geração.  A construção dessa artista, serena e vibrante, vem da junção de diferentes fatores, um deles a educação recebida dos pais, a atriz Marieta Severo e o cantor e compositor Chico Buarque. “Eles nunca tiveram isso de se acharem superiores aos outros”, comenta ela, por telefone, nesta entrevista ao NEW MAG. Na conversa, Silvia avalia sua estreia precoce na TV, fala sobre a relação com a filha, Irene, de 18 anos, rememora o afeto da tia, a cantora Miúcha (1937-2018), e lembra a vez em que Chico fez uma versão de “Força estranha”, de Caetano Veloso, para ajudar a filha pequena na prova de geografia.

Você vive no teatro duas diferentes mulheres. Uma lida com uma mãe conservadora, com quem o diálogo é difícil, e a outra conhece a mãe biológica tardiamente e, com isso, vai redesenhando suas origens. Em qual delas você se reconhece mais?

Me reconheço mais na Helena, a segunda personagem. Num primeiro momento quem chamou minha atenção foi a Antonia, mas com o tempo, a Helena foi me conquistando. Ela é um refresco para aquele lamaçal emocional que é a vida da Antonia. Ela tem leveza, humor… Tem aquele momento em que ela chama a mãe de promíscua e imediatamente pede desculpas…

A Helena não é careta…

Ela é muito parecida comigo sob esse aspecto. Ela fala rápido, como eu, e, muitas vezes, fala antes de pensar, como eu (risos). Ela é uma mulher bem resolvida, bem mais do que eu.

Irene, sua filha, é uma adolescente caminhando para a vida adulta. Vocês sempre falaram abertamente sobre tudo?

Sempre falamos sobre tudo: sexualidade, aborto e sobre feminismo, assunto que voltou a ficar em voga. A Irene fez 18 anos e levou muito a sério o fato de ter chegado a essa idade. Ela é muito consciente sobre direitos e deveres, sobre o direito de ir e vir de cada um.

A Sílvia no papel de mãe foi mais liberal ou conservadora?

Liberal. Aliado a isso há um fator que é o de a Irene ter sido razoavelmente bem comportada. Ela nunca me deu dor de cabeça.

Sua figura ganhou vulto nacionalmente na novela “Corpo santo”, exibida pela Manchete. Você tinha 18 anos na época. Com que foi mais difícil de lidar naquele momento?

(Sílvia fica em silêncio) Tudo foi muito difícil. Tinha muito pouca experiência e dei, na época, um passo maior do que as pernas. Uma pessoa fundamental foi o (diretor) Ary Coslov, que me pegou pela mão e me acolheu, e outra pessoa determinante foi a Nathalia Timberg.

Como foi a relação com a Natalia?

Ela me aceitou como eu era, uma atriz ainda crua. Ela não queria me doutrinar nem me ensinar nada e tinha muita paciência com minha imaturidade. Não tinha essa de dar sermão, nada disso. Ela me aceitou e me viu como uma colega.

 “Acalanto” foi composta para ninar você, na Itália…

Essa foi feita para a Helena. Para mim foi feito o samba “Ilmo Sr. Ciro Monteiro ou Receita para virar casaca de neném” (quando Silvia nasceu, o cantor Ciro Monteiro a presenteou com uma camisa do Flamengo)

Em que momento caiu a ficha de que aquele tema, tão lindo, estava ligado à barra vivida pelos teus pais no exílio?

Desde que me entendo por gente. Nasci no exílio, tive um parto difícil e meus pais sempre jogaram limpo sobre o que acontecia no país. Claro que, como éramos crianças, não falavam das mortes e das torturas, mas sempre soube que estávamos sob uma ditadura e que havia censura. “Olha, o papai não pode cantar essa música”, me era dito.

Você vem de uma família de notáveis, e incluo o seu avô, Sergio Buarque de Hollanda, e nunca teve um comportamento deslumbrado. Isso vem da criação que teve em casa?

Isso vem do exemplo que tive em casa, dos dois (Chico e Marieta), e muito da minha mãe, que era quem organizava as coisas. Eles nunca tiveram isso de se acharem superiores aos outros. E preservaram hábitos como o de andar com a gente na rua…

Seu pai caminha bem rápido pela rua…

Demais! Quando estou com ele peço para ele andar mais devagar (risos).

Ainda criança, você participou da gravação dos Saltimbancos. Qual a lembrança mais afetuosa você traz daquela época?

A da Miúcha (tia de Sílvia). A Bebel (Gilberto) participou da gravação e já cantava bonito. E ela já tinha uma série de regalias por ser a primeira neta da família, então lembro de a minha tia ter toda uma atenção comigo, de sugerir divisões vocais… Ela pleiteou os dois solos que tenho no disco.

No perfil assinado pela Regina Zappa sobre o Chico há um trecho sobre as estórias nas quais ele misturava diferentes personagens históricos. Marieta dizia que aquilo fundiria a cuca de vocês. Afinal, isso atrapalhou ou facilitou a vida escolar de vocês?

Não atrapalhou não. Uma lembrança muito viva que tenho é a do meu pai me ajudando a estudar geografia. Eu era louca pela Gal (Costa) e ele fez uma versão de “Força estranha”, do Caetano, com os nomes das cidades que eu precisava decorar e me saí muito bem na prova por isso (risos).

Você surge numa geração que nos deu grandes atores como Fernanda Torres e Júlia Lemmertz, só para citar duas mulheres. O que te deixa mais orgulhosa da tua geração?

Minha geração transita muito bem entre os três veículos, o teatro, a TV e o cinema. A gente se vira nas 11. É uma geração autodidata, que aprendeu fazendo. Por outro lado, somos mais individualistas por não termos vindo de grupos. É um pouco isso de cada um por si e Deus por todos, mas a nossa geração é foda!

Você já trabalhou com grandes encenadores e com nossos maiores atores. O que falta realizar no teatro?

Não sei mesmo. Ainda que eu tenha as rédeas da minha vida, não sou muito de planejar as coisas e acabo embarcando no sonho dos outros. Se você me perguntar qual a personagem que quero fazer, vou te dizer que não sei. Não tenho esse tipo de ambição.

“Pode o tempo marcar os caminhos as linhas das faces nas noites de não”? *

Pode, claro. E isso está acontecendo ainda. Quando meu pai diz “E a solidão maltratar as meninas\ As minhas não” é porque a gente tem uma tendência a proteger os nossos filhos, e falo aqui como mãe. Aquelas meninas têm hoje 54, 53 e 48 anos. Então, a canção foi mais do que uma previsão; uma constatação. E vamos seguindo com as nossas vidas.

*Verso de “As minhas meninas”, de Chico Buarque, lançada no LP “Francisco”, de 1986

Crédito da imagem: Leo Aversa

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