‘Levei porrada ao me tornar popular’

maio 30, 2025

Fagner celebra 50 anos de carreira e avalia sua trajetória, saúda a força do piseiro, celebra novas parcerias e lamenta a polarização no país

Um artista fiel à sua música, a seu público e a si próprio. Assim é Raimundo Fagner, nome com lugar cativo no panteão dos grandes da MPB. Fagner viaja o país com o show no qual celebra 50 anos de carreira, marco atingido em 2023, cinco décadas depois de lançar o antológico “Manera Fru fru, manera”. Naquele mesmo ano, caiu nas graças de Nara Leão (1942-1989) e Elis Regina (1945-1982), intérpretes exigentes e singulares, e, na década seguinte, conheceu a consagração popular, lotando, desde então, casas de shows país afora (e não será diferente no Vivo Rio, onde canta este fim de semana). Fagner resistiu com bravura às tentações do mercado. “O Brasil está batendo cabeça”, avalia nesta entrevista, por telefone, ao NEW MAG. A conversa era para durar 20 minutos e estendeu-se com o grande artista falando sobre pilares da sua discografia – como o álbum “Ave noturna”, de 1975. A seguir, ele saúda novos e antigos parceiros, endossa a legitimidade do piseiro, reconhece-se cabreiro com a Inteligência Artificial e é categórico em relação à força que a TV ainda tem na vida dos brasileiros.

Você chega a cinco décadas de carreira fiel a seus princípios. Foi difícil manter a integridade em meio a modismos e diretores de gravadoras que palpitavam pacas?

Já fui cult e levei muita porrada ao me tornar um cantor popular. O Fausto Nilo, volta e meia, me pede para fazer algo assim ou assado e digo a ele: Ô, Fausto, se fizer isso não vendo 10 mil cópias (risos). Cantei com ídolos como Nelson (Gonçalves), Cauby (Peixoto), sou cria do rádio e das serestas e me sinto bem em diferentes lugares na música, seja ela mais brejeira ou mais sofisticada.

Elis gravou Mucuripe no mesmo ano em que você gravou Penas do Tiê com a Nara. Isso causou algum embaraço entre você e Elis?

Nenhum. Eu estava alheio a essas desavenças quando cheguei ao Rio, o que foi bom, pois agi um pouco como um bobo da corte (risos). Fui muito bem acolhido por vários artistas.  Tive muita sorte.

No Ave Noturna você é acompanhado pelo Vímana em Riacho do Navio, em que a sanfona é tão marcante quanto a psicodelia do grupo. Você se mantém fiel às  tradições ao mesmo tempo em que está atento às novidades…

Esse trabalho tem um quê de modernidade, que vem de músicos como Candinho,  Lulu (Santos), e de sofisticação, com nomes como Paulo Moura. Ali tem muito também do Sion (Carlos Alberto Sion, produtor do álbum). Adoro instrumentos de cordas e, para mim, o Manassés (de Souza, grande violeiro) é uma referência. Já meu lance com a guitarra vem do Robertinho (do Recife).

Você chamou o João Gomes para participar de um dos teus projetos. O piseiro é uma renovação legítima do forró ou um modismo?

O João gravou “Reizado” num projeto meu. Acho que o próprio João é quem deve responder a essa pergunta. O forró tem várias vertentes: o xote, xaxado, e o piseiro é mais uma delas. A juventude se identifica com ele, e é possível que ele fique.

Você compôs com novos parceiros como Leo Russo e Xande de Pilares. Essa oxigenação é vital para perseverar na música?

Isso acontece de forma espontânea e, no caso do pessoal do samba, vem da minha amizade com o Moacyr Luz. Ele e eu estamos devendo uma parceria para a Mart’nália, inclusive. No caso do Leo, ele gosta do Ceará e isso nos aproximou. Nossa primeira parceria aconteceu na pandemia, o que não é nada costumeiro para mim. Meus parceiros são os amigos que fiz: Nando Cordel, Fausto Nilo…

Abel Silva…

Pensei em cantar “Sangue e pudins” no show. Como ela não foi ensaiada, quero fazê-la com o violão, como foi composta. Abel e eu moramos juntos nos anos 1970, nos desentendemos, mas a gente se adora. Como ele não tem celular e eu não uso e-mail, falamo-nos menos do que gostaríamos. Ele caminha muito pela cidade e, dia desses, nos encontramos e foi ótimo.

A arrecadação com direito autoral está pífia nesses tempos de plataformas e estreaming. Como vê os pleitos pela regulamentação do setor?

Minhas casas em Santa Teresa (onde morou nos anos 1970) e aqui no Baixo Leblon sempre estiveram abertas para nós, artistas, discutirmos nossos direitos. Hoje, acompanho as discussões à distância. Tomei conhecimento das declarações recentes do Ivan Lins, por exemplo. Se os artistas quiserem conversar, que nos juntemos então.

Inteligência artificial te preocupa?

Ela me assusta. A tecnologia é importante, claro, mas ela avançou de forma um tanto desordenada, e há um estrago feito. Precisamos ter mais cuidado com ela.

Como se deu a ideia de gravar um álbum com Luiz Gonzaga?

Eu era garoto, mas meu ouvido já era de adulto. Na primeira vez que vi o Gonzaga ao vivo, ele estava em cima de um caminhão. Essa ideia de fazermos algo juntos havia me ocorrido muitos anos atrás, e as conversas não avançaram. Certa vez, estava em São Paulo quando o vi fazendo uma refeição numa pensão. Conversamos, e a ideia seguiu. Foi bom porque acabei testemunhando a reaproximação dele com o Gonzaguinha, meu compadre.

Janete Clair completaria 100 anos e “Coração alado” foi uma guinada importante na tua carreira. Ainda é importante emplacar música em novela?

A TV não tem mais o poder de antes, mas continua importante. Músicas como “Coração alado” e “Pedras que cantam” (tema de abertura de “Pedra sobre pedra”) ficaram conhecidas no país todo e, em alguns casos, podiam dar nome a uma novela. Com a reexibição de “Tieta”, muita gente me aborda para falar sobre a minha música (“Amor escondido”). E havia ainda os clipes. Alguns diretores eram bacanas, e outros, vaidosos. Um queria botar uma orquestra tocando em baixo de chuva, veja só…

Você jmusicou Gullar, Cecília, Florbela… Sem poesia a sua vida não estaria completa?

Você e as suas pegadinhas (e cantarola “Motivo”): “Eu canto/ Porque o instante existe”… Taí outra música para entrar no show.  Me apaixonei tanto pela poesia da Cecília quanto pelada Florbela. Você falou do Gullar e me lembrou uma história engraçada. Tenho um carinho especial pelo Vinicius (de Moraes). Ele segurou minhas barras na Philips (hoje Universal). O Gullar tinha voltado do exílio, e o Vinicius me chamou a sua casa para me apresentar ao maior poeta brasileiro. “Oxe, e o maior poeta brasileiro não é você?”, perguntei (risos). O Gullar era foda, e o Vinicius também.

Você imortalizou “Leão” da Arca de Noé…

Estava no carro, voltando do campo do Chico (Buarque), quando a melodia me veio à cabeça. Voltei para casa dirigindo e cantando. Sempre busquei parceiros poetas: Fausto Nilo, Belchior, que era um grande poeta… A poesia fica, ela não passa.

Para quem diria hoje manera, fru-fru, manera?

Para o Brasil.

Por que?

O Brasil está batendo cabeça e precisa se encontrar. Há essa polarização forte pautada por diferenças ideológicas que precisam ser serenizadas. Hoje é cada um com o seu quinhão, e as relações vão sendo abortadas. É muita gente olhando o próprio umbigo. O Brasil tem e sempre terá diferenças.

Créditos: Christovam de Chevalier (texto e entrevista) e Jorge Bispo (imagem)

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