“O samba perde hoje sua maior guardiã”. Com essa frase a cantora e compositora Joyce Moreno traduz com precisão a relação de Cristina Buarque de Hollanda com o gênero musical. Relação pautada pelo zelo e pela devoção, evidentes (e audíveis) nos álbuns gravados por Cristina, que nos deixou neste domingo (20), aos 74 anos, em razão de complicações decorrentes de um câncer.
A íntérprete de timbre delicado e preciso vinha à reboque da pesquisadora (ou vice-versa), que acabaria por trazer à luz pérolas de grandes nomes do samba como Cartola (1908-1980), Manacéa (1921-1995) e Ismael Silva (1905-1978), compositor-referência também para aquele que, apartir de 1966, se tornaria o mais célebre de seus irmãos: Chico Buarque. É de Cristina a voz ouvida juntamente com a de Chico em “Sem fantasia”, composta originalmente para o musical “Roda viva” e registrada em dueto no terceiro LP do cantor e compositor.
A verve de pesquisadora influenciaria duas de nossas mais talentosas cantoras da atualidade: Marisa Monte e Monica Salmaso. O samba “Esta melodia” (Bubu da Portela e Jamelão), gravado por Marisa no CD “Cor de rosa e carvão”, fora lançado por Clementina de Jesus (1901-1987) e gravado também por Cristina, cuja produção fonográfica foi constante entre 1974, quando faz sua estreia em disco, e 1981.
Cristina seria considerada referência também para intérpretes dos quilates de Teresa Cristina e Zélia Duncan. Ecos desta pesquisadora (em especial do álbum “Ganha-se pouco, mas é divertido”, de 2000) podem ser ouvidos subinarmente em “Eu me transformo em outras”, gravado por Zélia quatro anos depois.
Muitas dessas pérolas eram garimpadas em reuniões e saraus promovidos por ela na cobertura de sua mãe, Maria Amélia Cesário Alvim (1910-2010), em Copacabana. Nas ocasiões, a própria Cristina comandava também o fogão, de onde saíam cozidos memoráveis. O cantor e compositor Pedro Miranda frequentou alguns deles e lembrou dos encontros com carinho.
“Ela era assim.Dona de um acervo e uma generosidade imensos, quando a gente menos esperava,chegava com uma playlist numa dessas mídias que não se usa mais”, escreveu numa rede socialo artista, que chegou a gravar com Cristina em dois momentos distintos.
O temperamento reservado de Cristina, comumente avessa a holofotes, foi destacado por sua sobrinha-cantora, Bebel Gilberto, em uma rede social:
“Minha tia loura arisca, da voz mais doce do samba… Que todos os anjos, incluindo Memélia e Mamãe, te recebam com muito juízo e alegria. Te amo”.
Cristina se vai. Ficam os álbuns. Eles não são muitos (se comparados aos de nomes de sua geração), mas têm uma característica que os faz preciosos: a relevância. E estão agora aí, à espera daqueles que os queiram (re)conhecer.
Créditos: Christovam de Chevalier (texto) e reprodução (imagem)