Gigante no apelido e na arte

novembro 22, 2022

Erasmo Carlos renovou-se sem nunca perder sua essência, tanto na música quanto na vida

“O cara que acha que vai viver eternamente acaba amargo e sofre muito. Acaba consumido por ódio, ódio do mundo, ódio de Deus, ódio dele mesmo. Um sujeito assim acaba morrendo antes mesmo de morrer”. A declaração foi dada por Erasmo Carlos em entrevista ao NEW MAG no início de maio. Erasmo estava promovendo seu álbum mais recente, “O futuro pertence à… Jovem Guarda” e, na ocasião, o artista se referiu à polarização então vigente no país. Lida nesta terça-feira (22), quando o cantor e compositor saiu de cena aos 81 anos, parece que Erasmo falava dele próprio.

Não exatamente dele, porque o ódio não combinava com Erasmo. Ele falava o que pensava, , se exaltava (e soltava palavrões), mas nunca se deixou tomar por sentimentos como ódio e inveja. O epíteto de Tremendão está associado a ele desde sua aparição na cena cultural, em meados dos anos 1960, e o acompanhou ao longo da carreira – e da vida. Acontece que outro apelido foi apropriadamente dado a ele por Rita Lee: o de Gigante Gentil. A alcunha fazia, de forma explícita, menção à altura do artista (1,93m) e, de forma implícita, a uma característica da qual Erasmo nunca abriu mão. Sobretudo depois da fama.

E essa característica era demonstrada não somente entre artistas, mas indistintamente. Se Roberto Carlos, seu mais fiel e longevo parceiro musical, é Rei; Erasmo era um duque de tão nobre que foi. Poderia ter se encastelado, como muitos artistas, mas isso não era do seu feitio. Erasmo era um romântico que nunca perdeu a pegada roqueira.

E se reinventou sem nunca perder a essência. A partir dos anos 1970, flertou com outros estilos musicais, compondo com o próprio Roberto o – creiam – “Samba da preguiça”, gravado por Nara Leão (1942-1989) no LP “Palco, corpo e alma”. A mesma Nara que, em 1977, gravou a buliçosa “Meu ego” no álbum “Meus amigos são um barato” e, no ano seguinte, seria a primeira cantora brasileira a dedicar um álbum inteiro ao cancioneiro de Roberto e Erasmo.

Entre as décadas de 1970 e 80, Erasmo gravou o que quis. Além de temas da própria lavra, gravou a profética (e hoje atualíssima) “Queremos saber”, de Gilberto Gil (recriada décadas depois por Cássia Eller) e, na década seguinte, gravou Gonzaguinha (“Nunca pare de sonhar”) e avalizou o promissor Lulu Santos ao escolher a balada “Boba”, parceria do guitarrista com Nelson Motta, para o LP “Buraco negro”, de 1984.

Nesse mesmo disco, Erasmo foi ousado. A segunda faixa do disco era “Close”, homenagem à modelo transexual Roberta Close, apontada na época como uma das mulheres mais belas do país. “Não fosse o gogó e os pés\ A minha lente entrava na dela”, cantou Erasmo como um recado corajoso aos machistas de plantão – e a faixa estourou nas rádios.

O artista seguiu, nas últimas décadas, atento ao que acontece na cena musical. Gravou com Marisa Monte e Adriana Calcanhotto,, sem descuidar da turma que manteve acesa a chama do bom e velho rock, de Skank a Pitty.

Erasmo era gentil, generoso, curioso e também afetuoso. Na ocasião do pedido da entrevista ao NEW MAG, Clarisse Goldeberg, sua assessora, entregou a ele uma lista dos veículos que gostariam de falar com ele – e não eram poucos. Algumas conversas seriam por telefone e outras respostas, dadas de forma remota. Ao ler o nome deste jornalista, sentenciou: “É o filho da Scarlet (Moon). Com ele quero falar”. Encerrada a entrevista, lembrou situações vividas com minha mãe e com Lulu (Santos). Erasmo era assim.

A entrevista ao NEW MAG termina com ele discorrendo sobre o futuro: “Meu futuro é o agora. Não faço contas a longo prazo. Nunca fiz, aliás. Não faço planos. A melhor estratégia é viver o presente. Vou atuando e, assim, vou sendo visto e lembrado. E as coisas vão surgindo. Tenho o privilégio de ter uma obra, que vai sendo descoberta pelas novas gerações e, quando você vê, tem novos fãs. O que é antigo vira novo para eles. E, assim, vou sobrevivendo”.

E, assim, vai se renovando. Ao escrever sobre Gal Costa, Joaquim Ferreira dos Santos, mestre da crônica, disse que uma voz não se cala; o cantor deixa apenas de gravar. A frase vale também para a voz de Erasmo, que é o que fica.

O Gigante Gentil está adormecido agora. Mas sempre há de ser gigante.

 

 

 

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