Uma vida como a de Gal Costa (1945-2022) não caberia numa narrativa de 90 minutos. Lô Politi e Dandara Ferreira, diretoras de “Meu nome é Gal”, sabem disso e acertam quando optam por abordar os quatro primeiros anos de carreira fonográfica da cantora. O filme, lançado na noite do último sábado (07), em sessão concorrida no Festival do Rio, abarca o período que vai de 1966, ano em que a artista chega ao Rio, e 1971, quando ela apresenta o revolucionário “Fa-tal – Gal a todo vapor”, show que se tornaria histórico.
A partir desse recorte, o espectador acompanha o amadurecimento de uma artista interiorizada, de forte influência joãogilbertiana – presente em “Domingo”, LP de estreia dividido com Caetano Veloso – à Gal mais extrovertida que, desde então, já dava sinais de que seria uma das maiores cantoras do país. “Vamos tirar essa borboleta do casulo”, propõe Guilherme Araújo (1936-2007) à novata.
Há uma máxima no meio teatral que diz que o maior elogio que um ator pode receber é o de não ter sido reconhecido num papel. Sophie Charlotte, que dá vida à cantora, acaba chegando a esse lugar – de fala e de canto. A atriz despe-se de sua persona para assumir a da personagem, sem, contudo, cair no mimetismo esvaziado. São muitas as características de Gal das quais ela se apropria, e as mais evidentes são, talvez, as relacionadas à dicção e a embocadura da fala da artista. Sim, o nome de Sophie é Gal.
E o mesmo pode ser dito sobre outros nomes do elenco. Luís Lobianco não conheceu Guilherme Araújo, seu personagem no filme, mas é impressionante como o ator captou o carisma, a inteligência e a rapidez de raciocínio que eram marcas do empresário. Resultado tão impressionante quanto é o de Rodrigo Lélis, que compõe um Caetano crível e cuja contundência o aproxima muito do personagem real. Esses dois atores podem muito bem dividir o prêmio de Ator Coadjuvante.
O filme reaviva figuras importantes da Contracultura que, mesmo em participações menores, são contundentes (e tocantes). São os casos de dois poetas e justo os criadores da “Navilouca”: Torquato Neto (1944-1971) e Waly Salomão (1943-2003). Enquanto o primeiro é mui apropriadamente vivido pelo também jornalista Claudio Leal, o segundo tem sua exuberância captada com perspicácia por George Sauma.
Por se tratar de uma cinebiografia, o roteiro traz elementos ficcionais que fogem um pouco dos fatos narrados. Gilberto Gil chamava Gal de Gaúcha, e a cantora se referia a Waly como Sailor (em alusão a Sailor Moon), mas estes acabam sendo detalhes tão pequenos que não comprometem a empatia que o filme desperta.
Prova disso foi o fato de que, na premiere, a cena em que Gal grava “Baby” (gravada, sim, por Maria Bethânia no LP “Recital na Boite Barroco, de 1968) arrancou aplausos efusivos do público. O mesmo se repetiu quando Gal-Sophie canta “Divino maravilhoso”.
“Tente passar pelo que estou passando”, reza um dos versos de “Pérola Negra”, de Luiz Melodia (1951-2017), incluída no repertório de “Fa-tal”. Com Gil e Caetano exilados, Gal tomou para si o papel de porta-voz (e porta-bandeira) da Tropicália. Tal papel foi desempenhado com maestria, e o filme mostra isso com apuro e sensibilidade num encerramento emocionante sobre o qual não haverá aqui spoiler – e não se assuste, pessoa.
Gal foi uma cantora que respeitava suas lágrimas e ainda mais sua risada. E escreveu palavras na voz de uma mulher sagrada. E Sophie Charlotte percebeu bem as sutilezas dessa mulher. “Meu nome é Gal” é uma dessas belezas acesas por dentro e que acabam por resplandecer em amor. Da cabeça aos pés. Ou, melhor dizendo, do começo ao fim. Não deixe de ver.
Crédito das fotos: Thereza Eugênia