Vera Holtz conquistou belos feitos ao longo de 45 anos de carreira. Um deles é o de estar, aos 71 anos , no panteão de nossas grandes atrizes. O outro é o lugar cativo no coração do público, que a acompanha mo teatro, onde estreou profissionalmente com “Rasga Coração”, de Vianinha (1936-1974), em 1979, e na TV, onde ingressou pouco depois. Vera é daqueles artistas capazes de nos emocionar e instigar. E este último modo é acionado a cada vez que ela sobe ao palco em “Ficções”. A atriz vem lotando teatros com a adaptação de “Sapiens – Uma breve história da humanidade”, do historiador israelense Yuval Harari. Vera e Federico Puppi, seu companheiro de cena, são ovacionados ao fim das sessões. E assim será neste fim de semana,quando fazem, no Teatro Carlos Gomes, Centro do Rio de Janeiro, as últimas apresentações do espetáculo na cidade. Nesta entrevista ao NEW MAG, Vera fala da sua fé na humanidade, rasga seda a Drica Moraes, relembra ensinamentos de Antonio Abujamra (1932-2015), um de seus mestres, e revela que amigos cotizam-se para ampararem-se na velhice. OK, mas a essa fase da vida, a iatriz não chegará tão cedo. Não em se tratando de Vera Holtz.
“Ficções trata da evolução humana, e uma coisa latente no espetáculo é que, apesar dos avanços da ciência e da tecnologia, involuímos. Como anda a sua fé na Humanidade?
Tem uma curiosidade na palavra Universal. Decantando, vamos ter oembate entre o uno e o alheio. No início, era o reconhecimento da diferença, a era das descobertas. Hoje, a Universalidade virou o seu oposto. Eu não te conheço e te odeio. /vivemos numa era de superficialidade odienta. Ao mesmo tempo em que o conhecimento se disponibiliza, o radicalismo o resume ao pó.
Falando em evolução, a Inteligência Artificial ganha cada vez mais vulto no dia a dia. Ela te fascina ou aflige?
A Inteligência Artificial está no meio de nós. É impossível evitá-la. Está aí já há muito tempo, ganhou fama, tornou-se celebridade. Um ponto que ela afeta, e que vem me interessando, é em relação às questões respondidas pela IA, uma vez que dependem da formulação das suas perguntas. Nesse sentido, o etarismo pode e vai ocupar um lugar, diferente do esquecimento a que está condenado. A bagagem, neste caso da IA, é algo que pode ser aproveitado. Nesse sentido, ela vai cumprir, também, um papel social.
Você faz uso muito assertivo das redes sociais ao comentar, através de imagens, situações da vida política e social do país. O artista é um ser político afinal?
Estar no palco é um ato político. Pintar um quadro é um manifesto. Escrever uma poesia é transformar as pessoas. A arte possui este encargo do sagrado que é tocar o outro. Se tudo é criação, o sentido é o de que você pode recriar. Novas crenças, novas ficções, novos acordos.
“Tia Virgínia” trata de uma situação muito comum nas famílias brasileiras: a de alguém que precisa cuidar de um ente idoso por não ter constituído família, o que pode ser injusto também. Como foi para você lidar com essa questão?
Hoje a realidade é outra. Quem cuida é quem tem uma relação afetiva maior com a pessoa. Nós somos quatro irmãs na minha família. Nós quatro cuidamos dos nossos entes queridos e vamos continuar cuidando com afeto. As gerações mais novas estão se organizando para comprar propriedades coletivas. Elas se preocupam em passar esta parte da vida juntas, em espaços organizados para esta vivência. Na Alemanha já se faz isso. Nós mesmos, um grupo de amigos, estamos organizando uma comunidade para termos um lugar onde vai ser possível dividir os cuidadores, os fisioterapeutas, os médicos. Quanto à solidão, não posso falar nisso. Nunca tive esta vivência.
Você prestigiou “Pérola”, filme no qual Drica Moraes interpreta o papel-título de forma tocante. Como foi ver a personagem que você viveu no teatro sob um novo prisma?
Sempre tive uma intuição de que a Drica deveria fazer a Pérola. Era uma intuição minha, não me pergunte o porquê. Vê-la fazendo foi uma emoção. Eu tenho uma relação muito profunda com esta obra. Sou contemporânea da dramaturgia do Mauro (Rasi). Ver aquelas personagens, apresentadas sob outro ponto de vista, uma outra geração. Eu digo que a Pérola do Murilo é uma Pérola carioca. Quanto mais pontos de vista sobre uma obra, mais ela viverá. Mauro vive.
Hoje fala-se muito sobre etarismo. .. Algum papel que gostaria de viver no teatro e que a maturidade a torna mais apta a fazê-lo?
O etarismo é uma questão muito delicada. São palavras inventadas. A minha vida é plena de interferências do acaso, para eu pensar em fazer, escolher uma personagem. A minha vida é muito misturada, com o tempo, com a vida, com o aqui e agora. Nunca fui de me programar para fazer uma personagem. Acredito que você pode fazer grandes papéis em qualquer idade.
Seu primeiro papel de destaque na TV Globo foi na novela “Que rei sou eu”, na qual era ajudante de Ravengar, interpretado pelo grande Antonio Abujamra. Tempos depois, você foi dirigida por ele em “Um certo Hamlet”. Qual ensinamento deixado por ele você traz consigo?
Ele é evocado toda a vez em que entro em cena, junto com atores e diretores que fazem parte constitutiva da minha vida.
Uma pergunta no estilo Abujamra: a vida é sonho ou é uma história contada por um idiota cheia de som e fúria?
O Abujamra sempre nos provocava dizendo que, na hora em que começamos a gostar das vitrines, é hora de viajar. Conhecer o movimento do mundo para, então, poder pegar a corda da liberdade e se enforcar nela. Para quem gosta de abismos, é preciso ter asas. Conhecer tudo e não usar nada, eis a questão. Afinal, a vida é sua: estrague-a como quiser. É tudo uma grande ficção, ou… Ficções (risos).
Crédito da imagem: Reprodução