‘Coloquei meus monstros para fora da forma que pude’

abril 15, 2022

Maitê Proença fala sobre as tragédias pessoais que leva à cena, nudez, 'Dona Beija' e faz um balanço sobre o fim do vínculo com a Globo

O Brasil se encantou por uma mulher de cabelos castanhos claros, fala suave e olhos verdes e vívidos. A mulher em questão é Maitê Proença que, desde sua estreia na TV, em 1979, atuou em diferentes produções (só novelas são 25). O público a via e não imaginava o que ela trazia consigo. Maitê tinha 12 anos quando o pai matou sua mãe e, anos mais tarde, o perderia em razão de um suicídio. Ela volta a lamber essas feridas, agora cicatrizadas, no solo “O pior de mim”, que apresenta no Teatro Prudential, de sexta a domingo. E justo essa peça é a mais pungente em cartaz hoje no Rio de Janeiro. Aquela moça que entrou na profissão por acaso (“como tudo na minha vida”), aprimorou-se como atriz e deu vez (e voz) à escritora. Tanto que “O pior de mim” será também um livro – o terceiro da autora. “O tempo tem mesmo muito valor”, admite ela em entrevista via zoom ao NEW MAG. E Maitê reconhece isso com serenidade. Aos 64 anos, ela está  inteiraça: na cena, na escrita e – o melhor dela – na vida.

Até que ponto a experiência vivida com os teus pais influiu na forma como a Maria, sua filha,  foi educada? Você conseguiu ser uma mãe presente na vida dela?

Fui muito presente na infância da Maria. A partir do momento em que ela nasceu, ela se tornou minha prioridade. E sempre busquei conciliar as obrigações profissionais com os cuidados com ela. Fiz teatro quando ela era pequena e, quando saímos em turnê, eu a levei comigo. Algum tempo depois, gravei uma minissérie e o (diretor Roberto) Talma brincava que tinha de comprar leite de cabra para a Maria (risos). Ficamos em Paraty gravando por três meses e, de fato, ela tomava leite de cabra e isso virou uma brincadeira nos bastidores. Cuidar da Maria foi uma decisão prioritária.  Conciliava o trabalho com os cuidados com ela da forma que fosse possível.

Durante um tempo, a família da tua mãe se afastou por você ter sido testemunha de defesa do teu pai. O tempo quebrou o gelo que havia entre vocês?

Não vou falar sobre esse assunto.

Ter vivido a Sinhazinha, uma mulher oprimida pelo marido, no remake de Gabriela mexeu nessas cicatrizes?

O trabalho do ator te leva a mexer em certas feridas. Elas cicatrizam e são trabalhadas ao longo da vida. Você precisa lidar com elas para seguir e fiz meu percurso. Quando comecei a atuar, não sabia que teria de lidar com emoções trancadas. Descobri fazendo. Houve um tempo em que tive muita dificuldade de fazer cenas de violência física. Certa vez, na Manchete, os câmeras se compadeceram e choraram. A conversa com o diretor influi muito no desempenho, e o resultado depende do que ele propõe. É uma via de mão dupla. Há os diretores sádicos e há os sensíveis como o Maurinho (Mauro Mendonça Filho), que me dirigiu em “Gabriela”. Com os sádicos não funciono nada bem. Com os sensíveis, funciono melhor.

Em 1984, você viveu sua primeira personagem real, a Marquesa de Santos, na extinta Manchete. Qual foi o maior desafio de encarar uma personagem histórica?

A “Marquesa” foi o primeiro grande projeto de teledramaturgia da Manchete. O Adolfo Bloch  (dono da emissora) adorava comer, e a Manchete tinha um restaurante ótimo. Eu brincava que o prédio era um restaurante com uma editora em cima. Mas a experiência de viver a Domitila (de Castro, amante de D. Pedro I) foi muito desafiadora, sobretudo num país desmemoriado como o nosso. Havia muitos registros sobre ela, então o processo de composição foi mais embasado do que o da Dona Beija, que também foi uma personagem real. O fato de a Beija ter se prostituído fez com que sua família escondesse muita coisa sobre ela. Então, o trabalho de composição foi mais intuitivo. Acabei mostrando uma mulher cheia de contradições, que era liberal ao mesmo tempo em que podia ser conservadora com as filhas. Esse lado humanizado da Beija fez com que a família passasse a vê-la com outros olhos.

Já que você se antecipou e trouxe a Beija para a conversa, a novela foi um sucesso de audiência. Estar em evidência já te incomodou?

Uma coisa que é preciso ser dita é que “Dona Beija” alcançou 42% de audiência. Isso, num tempo em que a pessoa tinha de levantar e mudar de canal no aparelho de TV. Havia um monopólio da TV Globo, e a Manchete abriu uma frente de trabalho para os atores e profissionais de TV. E sofri ameaças, claro. Diretores como o (Walter) Avancini diziam: “se for (para outra emissora), não volta mais”. Em relação ao incômodo com o sucesso, eu gosto muito de gente. Viajo e falo com as pessoas aonde vou. Já estive na África, em localidades vulneráveis. Visitei o Haiti após um terremoto. Tudo isso motivada pelo interesse que tenho pelas pessoas. Acontece que, quando você se torna uma pessoa pública, as pessoas lidam com você de outra maneira. Elas passam a se relacionar com o que idealizam a seu respeito. Adoro minha profissão, mas preferiria me dedicar a ela sem isso implicar em ser uma pessoa pública.

Em 2003, você passa a publicar crônicas na revista Época, o que surpreendeu muita gente. De lá para cá, lançou livros e escreveu peças teatrais. Como foi mostrar a Maitê escritora?

Como tudo na minha vida, isso aconteceu por acaso. A revista me ofereceu duas páginas, algo entre 3 mil e 4 mil caracteres. E eu não fazia ideia do que eram 1 mil caracteres (risos)! Eu tinha liberdade de falar do que quisesse. Acontece que sou aquariana e todos os assuntos me interessam. A liberdade quando é muita também pode te deixar tonta. Meu editor disse que 90% dos colaboradores eram homens e que a revista precisava de um olhar feminino. E como é isso? Chegou um momento em que precisei falar de mim e da vida particular que, até então, mantive fechada. As histórias da minha vida envolvem outros personagens e expô-los implica em consequências. Mas foi bom porque tive oportunidade de mostrar a minha versão. Ao ler um dos meus livros, minha terapeuta comentou: “para quem tentava se esconder, você fez um bom trabalho”. Coloquei meus monstros para fora da forma que pude.

Durante muito tempo, você recebeu convites para posar nua e recusou. Quando topou, as edições foram campeãs de vendas. Sendo a mulher linda que é, por que relutou tanto?

Nunca tive problema com a nudez. Na infância, vivia pelada em casa. Isso durou até a chegada do meu irmão, que foi adotado quando eu tinha uns 11 anos. Depois, já adulta, viajei pela Europa e a nudez nunca foi tratada por lá  como um tabu, mas uma coisa natural. Acontece que, no Brasil, tudo acaba sendo muito sexualizado. As revistas me convidavam, e eu gostaria de fazer algo com um conceito, como via na Photo e em outras revistas estrangeiras. Queria mostrar às mulheres que a nudez poderia ser exposta dentro de um contexto, com um conceito por trás. Quando isso foi possível, foi feito. Uma das edições da Playboy que fiz foi a que mais vendeu (720 mil exemplares, um feito e tanto para aquele ano de 1996).

Em 2016 foi encerrado seu contrato com a TV Globo. O susto já deu lugar àquela sensação boa que a liberdade traz?

O tempo tem mesmo muito valor. No trabalho do ator, o que resulta do seu esforço não necessariamente é um produto artístico. Quando não é esse o resultado, a gente se frustra. Então, você passa a ficar mais seletivo. Se você fez um bom pé de meia, você pode se dar esse luxo. Quando não, é traumatizante. Ainda mais quando lhe foi dito que você ficaria na emissora. Soube que seria afastada pela imprensa marrom. Isso, após 37 de dedicação. As novelas estão hoje mais equilibradas, com diferentes núcleos. Peguei uma época de sobrecarga, em que a trama ficava muito centrada nos protagonistas, em que trabalhávamos 18 horas por dia. Só que esses protagonistas tinham problemas, ficavam doentes, essas coisas. Foi puxado. Hoje, o dinheiro encolheu e a liberdade aumentou… Entre um e a outra, a liberdade tem hoje mais valor para mim.

Crédito da imagem: Dalton Valério

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