Numa das primeiras falas de “O céu da língua”, Gregório Duvivier faz uma constatação gaiata e verídica: diante de um imprevisto num voo, uma aeromoça jamais vai perguntar se há um poeta a bordo. A poesia está, para muitos, na esfera do supérfluo – não para ele. Homônimo de Gregório de Matos (1636-1696), ele seguiu a sentença de Drummond e foi ser gauche na vida. E abriu frentes em campos como o do humor e o da análise política, tornando-se referência em jogar luz sobre temas factuais do país e do mundo. Questões abordadas por ele no Porta dos Fundos, coletivo que ajudou a criar; como âncora do Greg News, na poesia e no teatro, onde leva o público às lágrimas em “O céu da língua”. “Escrevo essa peça há 38 anos”, constata ele, por telefone, nesta entrevista ao NEW MAG. A seguir, Gregório fala de sua relação com a escrita, aponta Caetano Veloso como nosso maior intelectual, aplaude a denúncia da PGR contra Jair Bolsonaro e fala das contradições do mundo de hoje e do Planeta que restará às filhas. E ,senhores passageiros, há um poeta a bordo.
O espetáculo é uma declaração de amor à língua e ao nosso país. O que exatamente te motivou a realizá-lo?
Vem dessa obsessão que tenho pela palavra, que me acompanha desde criança. Lembro de nem saber escrever ainda e já rabiscar num caderno., num resultado mais parecido com um eletrocardiograma (risos). A etimologia é algo que me atrai há muito. Adoro descobrir palavras novas e vi que a Luciana (dramaturga da peça) também tem essa onda. Nas nossas conversas falamos sobre palavras. Estro, por exemplo: é o ócio dos animais e o anima da criação,e é fascinante que sirva a duas situações contraditórias. Então, de certa forma, posso dizer que escrevo essa peça há 38 anos.
Caetano está presente no espetáculo com O quereres e com “Livros”. O que ele representa para o Gregório que é também poeta e um observador do seu tempo?
A gente tem no Brasil a sorte de o nosso maior intelectual ser um artista popular. Ele é dois em um. Se compararmos com os Estados Unidos seria como se tivéssemos o (filósofo) Noam Chomsky e o Bob Dylan na mesma pessoa. Como se, na França, o Sartre e o Maurice Chevalier fossem a mesma pessoa. E temos esse cara no Brasil. Caetano é quem melhor traduz nosso país. Seu pensamento crítico é brilhante. Ele é a personificação daquela máxima Oswaldiana que previa que as massas comeriam do seu biscoito fino. A poesia brasileira por ela mesma não chegou aos grandes estádios, como aconteceu na ex-União Soviética,mas, aliada à música, ela chega às multidões.
Por falar em Caetano, através dos LPs da Bethânia, cheguei à poesia do Fernando Pessoa que me levou a outros poetas. O que ou quem foi sua porta de entrada na poesia?
Foi através de discos que ouvi na infância e nos quais estórias como as de Chapeuzinho Vermelho eram narradas de forma rimada. O Braguinha (compositor João de Barro) tinha a ver com esse projeto. E, tempos depois, cheguei à poesia do Manuel Bandeira através da minha avó. Ela conheceu o Bandeira e falava muito nele. Ele tinha essa característica de ser autoirônico ao mesmo tempo em que era profundo e político. Através dele, cheguei a Drummond , ao Vinicius e a outros nomes da poesia brasileira. Sou apaixonado pelo cânone do século XX.
Como recebeu a notícia da denúncia apresentada pela PGR contra o ex-presidente Bolsonaro e os demais envolvidos nas tratativas de golpe? Confia que o processo será aberto?
Recebi com regozijo, mas acho difícil que o processo seja aberto. No Brasil é muito difícil um contraventor com colarinho branco pagar pelos crimes que cometeu. Esta denúncia envolve ainda militares de diferentes patentes que,s e forem condenados, seráalgo inédito no país. O (torturador) Brilhante Ustra nunca pagou por seus crimes e continuou sendo remunerado até sua morte. O mesmo se deu com os assassinos do (deputado) Rubens Paiva. Bolsonaro deveria ter sido preso em outras ocasiões, como no ano 2000, quando fez apologia à Ditadura, o que fere a Constituição. Foram várias oportunidades perdidas.
Vemos empresários tornando-se personalidades e envolvendo-se com política como Elon Musk nos EUA, atrapalhando conquistas relacionadas aos Direitos Humanos. A que você atribui essa promiscuidade?
Elon Musk é um oligarca que vem de uma família que enriqueceu explorando diamantes num país (África do Sul) onde havia Apartheid (segregação entre negros e brancos). Há nos EUA essa cultura de que os empresários são self-made men, mas isso é uma balela. Eles são agraciados com incentivos e benefícios para estarem onde estão. Os chineses fazem carros elétricos mais baratos e melhores do que os americanos, mas não interessa baixar essa guarda. A relação entre grandes empresários e presidentes sempre existiu. O que talvez seja inédito é que Trumpé um fantoche na mão de Musk e não o contrário.
Em “Sonetos de amor e sacanagem”, você abordar temas atuais e universais. Você tem isso de bacana: é atual respeitando mundos antigos…
Adoro tudo o que é velho (risos). E adoro subverter o que é velho. A forma fixa ou clássica muitas vezes pode ser útil para você fazer algo novo. E, assim, você a subverte e a contamina. No meu caso, usei de sonetos em decassílabos para falar de Tik Tok e de candidíase. Sou apaixonado pela forma e, hoje, com essa peça, escrevo uma carta de amor ao decassílabo. E quem abriu minha cabeça para isso foi o (poeta, tradutor e professor) Paulo Henriques Britto. Ele me mostrou que a forma fixa tem seu mérito por trazer valores aliados ao ritmo e à métrica que podem proporcionar outras experiências estéticas ao contrário dos poemas que escrevemos na adolescência. É preciso ter um valor estético em cima do sentimento e isso tem a ver com apuro.
Falando em apuro, o politicamente correto é uma libertação ou um grilhão para o humor?
Primeiramente, o que o politicamente correto significa? Esse termo é muito usado pela direita para corrigir os deslizes cometidos pela classe política. Na política a correção não existe, então o termo é uma abstração. No caso do humor, é importante que os comediantes tenham uma consciência maior do seus papéis. Ouço colegas reclamando de como está difícil fazer humor no Brasil. E foi fácil em algum momento? O comediante tem de lidar agora com pessoas que questionam as coisas, e esse choque de cultura é importante.
Com que mundo você espera que a Marieta e a Celeste convivam?
Eu me faço essa pergunta todos os dias. Quando era mais novo, desdenhava da longevidade e dizia que não gostaria de viver muito. Depois que tive minhas filhas isso mudou. Quero vê-las crescidas e ver meus netos e, quem sabe, meus bisnetos. A gente tem filhos para se preocupar com o mundo, e essa preocupação é latente. A questão não é mais você e sim o todo. É uma revolução que precisa acontecer como a provocada por Copérnico, quando a Terra deixou de ser vista como o centro do universo. O cinismo com o Planeta não é mais permitido.
Vou fazer como você faz na peça e encerrar também com Caetano: O que quer e o que pode esta língua?
Essa canção (“Língua”) é impressionante. Então, vou citar outra canção, “Sampa”, que tem um verso que diz muito sobre nós: “túmulo do samba ou novo quilombo de Zumbi”. A língua pode ser um túmulo ou um novo quilombo. Ela foi usada, ao longo de séculos, como um instrumento de opressão, mas pode ser também um instrumento de libertação. Quantas pessoas nãose expressam por se sentirem incapacitadas? O Brasil pode ser o túmulo do samba ou o novo quilombo de Zumbi e cabe a nós escolhermos qual caminho seguir nessa bifurcação.
Créditos: Christovam de Chevalier (texto) e divulgação (imagem)