Uma mulher em sua plenitude. Assim é Júlia Lemmertz. Filha dos atores Lineu Dias (1927-2002) e Lilian Lemertz (1937-1986), ela cresceu nas cochias dos teatros e nos sets. Relutou, mas, como na canção do Cazuza (1958-1990), seu destino fora traçado na maternidade. E, nos anos 1980, o país a viu despontar como uma das atrizes mais vibrantes de uma geração plena de talentos. E alguns deles ela reencontra agora nos palcos. Júlia é um dos sete atores de “Os mambembes”, cuja montagem, a partir do clássico de Artur Azevedo (1855-1908), aporta no Teatro Casa Grande, no Rio de Janeiro, após “mambembar” (segundo o jargão teatral) pelo país. “O teatro sempre terá personagens para atores de todas as idades”, sentencia ela, nesta entrevista por telefone ao NEW MAG. A seguir, a atriz fala do que a leva a perseverar na profissão, critica a estagnação da TV e revela planos que incluem um documentário sobre sua mãe e um espetáculo sobre o mundo de hoje, propenso a “válvulas de escape” como os bebês reborn. Sobre essa onda, Júlia é categórica: “Acho uma maluquice completa”.
Você, Deborah e Claudia surgiram nos palcos e na TV na mesma época e voltam a trabalhar juntas agora. O que é mais saboroso nesse reencontro?
Todos nós estamos nos reencontrando. De todos ali a Cacau (Claudia Abreu) é com quem mais trabalhei. Ela tinha 18 anos quando trabalhamos pela primeira vez e, de lá para cá, fizemos “Viagem ao centro da Terra”, “Ela odeia mel”, com o Hamilton (Vaz Pereira) e, mais recentemente, “As três irmãs”. Trabalhamos com pessoas que não necessariamente tornam-se nossas amigas. Eu mesma tenho milhares de conhecidos, mas, no caso deste elenco, todos somos amigos. E o fato de estarmos juntos proporciona uma alegria como a de estar num parquinho, sabe? Ainda mais nesse espetáculo, que trata da nossa vocação e sobre o que nos mantém nessa profissão.
Qual de vocês é o mais gaiato e qual o mais ortodoxo?
O Paulo (Betti) é o mais gaiato. Não há a menor dúvida! Todos somos brincalhões e “caxias” na hora em que precisamos falar sério. Talvez o que tenha maior rigidez seja o Emílio (de Mello), por ser também nosso diretor. Alguém ali precisa botar ordem na nossa bagunça.
Você está mambembando como a geração dos teus pais fazia. Como é usar desse recurso em tempos de hiperconectividade?
Nunca deixei esse lugar de lado e o levo ao longo da minha vida profissional. Então, mais do que um resgate, é uma confirmação. A profissão do ator é parecida com a do médico: um sacerdócio. O caminho do ator é feito de erros e acertos que nos levam a nos aperfeiçoarmo-nos. Estamos sempre recomeçando do zero e nos reinventando. E ninguém se estabelece levando a vida na flauta.
Sendo filha de uma grande atriz, relutou ou teve receio em abraçar o ofício?
Qualquer comparação entre mim e minha mãe será injusta. Meu avô era caixeiro viajante, e minha mãe foi a primeira atriz da família. Já eu cresci nas cochias de teatro e nos sets de filmagens. Na adolescência,quando me perguntavam se seria atriz, dizia que ia ser veterinária ou oceanógrafa. Quando escolhi ser atriz, foi uma surpresa na família. Minha mãe tinha 48 anos quando morreu. Quando achava que teríamos um encontro artístico isso não aconteceu. Ela se foi e ficou aquele vazio.
Pensa em prestar a ela alguma homenagem?
Estou preparando um documentário sobre ela. Esse trabalho está sendo desenvolvido com o João Jardim.
Você já trabalhou no cinema com nomes da cultura pop como Xuxa e, mais recentemente, Sandy e Jr. Você transita bem entre ser uma atriz-raiz e ser uma peça na engrenagem do entretenimento?
Não faço essa divisão. Tudo está num mesmo balaio. Eu tinha 27 anos quando atuei no filme da Xuxa e, hoje, há pessoas de 40 anos que me conheceram justamente no filme da Xuxa. Não sou uma atriz popular, não fiz muitas comédias, mas acho que transito bem entre esses dois lugares.
Numa cena de Em família você e Bruna Marquezine contracenavam de olhos vedados e, lá pelas tanas, tiravam as vedações num resultado muito bonito. A TV aberta demorou a ousar?
A TV ficou careta e está engessada. Tudo o que hoje é vendido como “novidade” não soa como novidade. Pesquisando para o documentário sobre minha mãe, assisti a cenas dela que me tocaram muito. O trabalho do ator era muito mais visceral. Isso num tempo em que não havia grupo de discussão. Os atores precisam ousar mais. As novelas deveriam ter momentos em que fosse ao vivo para que o ator possa correr riscos, errar e improvisar. Claro que manter uma novela no ar ao longo de 200 capítulos é uma barra. Temos hoje autores muito interessantes como a Rosane Svartman e a Manuela Dias, mas a TV precisa de obras mais curtas.
Com qual autor gostaria de trabalhar ou qual personagem gostaria de interpretar e que ainda não foi possível?
Essa é justamente uma questão para mim. Há milhões de autores e personagens… O teatro sempre terá personagens para atores de todas as idades. O teatro comporta isso tudo. Acontece que as coisas sobre as quais gostaria de falar podem não estar numa peça já escrita…
E sobre o que gostaria de falar?
Quero falar desse mundo que está se deteriorando diante de nós. Que mundo é esse? Não aprendemos nada com a pandemia e seguimos por um caminho que levará a nossa extinção. Tenho lido obras de filósofos, cientistas, astrofísicos e gostaria de levar essas ideias ao palco. Precisamos mudar nossas perspectivas e nosso discurso. No caso da crise climática, não se trata de crise, mas de uma realidade climática! O que precisamos dizer às pessoas em relação a esses temas? Estou nesse lugar, e o espetáculo pode ser um solo ou algo que envolva outros atores.
Como mãe e avó,o que acha dessa onda dos bebês reborn que cresce especialmente no Brasil?
Acho uma maluquice completa! E, nesse caso, isso tem a ver com uma carência afetiva imensa. A sociedade está propensa a delírios de todo tipo de ordem, e precisamos estar atentos. O mundo está acabando, e as pessoas gastam fortunas com essas bonecas! São esses nossos tempos.
O que é preciso fazer para deter esse delírio galopante?
É preciso haver uma regulamentação sobre conteúdos na internet. Veja o caso dessa menina que morreu ao aceitar um desafio. Quem são os culpados pela morte dela? Há uma gama de culpados: os outros jovens, os pais, a empresa responsável pelo aplicativo e os demais sites a ele relacionados. Os jovens crescem vendo o mundo pelo celular e, quando precisam lidar com ávida real, não têm estrutura para isso. E qual o resultado? Angústia, ansiedade e solidão, sem falar na falta de paciência para vivenciarem processos. Cursar uma faculdade então? Imagina! Tudo em razão desse imediatismo das novas tecnologias.
Créditos: Christovam de Chevalier (texto e entrevista) e reprodução/instagram (imagem)