‘A sociedade tende a buscar culpados’

janeiro 24, 2022

Médica Marcia Rachid traça paralelos entre a pandemia da Aids e a da Covid-19

Quando o assunto é infectologia, Marcia Rachid é referência no país. Sobretudo em se tratando do HIV. Causador da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids), esse vírus ceifou vidas entre as décadas de 1980 e 90. Muitas dessas baixas foram acompanhadas de perto por ela, assim como os avanços que, nos anos seguintes, ajudaram a controlar o vírus e a arrefecer os efeitos da doença. O que ela viu e viveu nesse front está em “Sentença de Vida” (Máquina de Livros), no qual ela mostra que manda bem também como cronista. Sobre as pandemias de ontem e a de hoje, falamos a seguir.

No livro Sentença de vida, a senhora faz um painel de como o tratamento da AIDS e o controle do HIV evoluíram. O que há de semelhante entre o combate àquela pandemia e a que enfrentamos agora? 

Embora tenha havido um grande avanço científico, o preconceito ainda é uma das principais causas por afastar as pessoas do tratamento. O que acontece com a Covid mostra, de alguma forma, semelhanças em relação à reação da sociedade. Todas as vezes em que estamos diante de uma pandemia, a tendência é a de que a primeira reação seja o medo. A partir dele, ocorre um enfrentamento ou, por outro lado, podem surgir fantasias e, a partir, delas, serem criados conceitos que podem se voltar contra as próprias pessoas afetadas. A sociedade tende a buscar culpados pela infecção ou por aquela doença, esquecendo que os responsáveis são micro-organismos.

A infecção pelo HIV cresce entre as populações pobres e negras, enquanto está estabilizada entre os mais ricos. Quais políticas precisam ser adotadas para proteger os menos favorecidos? 

A infecção continua crescendo. A mortalidade diminuiu graças ao avanço científico, havendo reduções de morbidade (doença) e de mortalidade. A redução da mortalidade acontece especialmente entre pessoas brancas enquanto observamos lamentavelmente um acréscimo de 10 a 12% na mortalidade de pessoas negras. As pessoas mais atingidas pela doença são previamente vulnerabilizadas, como pessoas trans, pobres ou negras. Esses grupos apresentam vulnerabilidades prévias, que também chamamos de interseccionalidades.

Recentemente, vimos o aumento da transmissão de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) como a da sífilis. O uso do preservativo diminuiu? Isso se dá entre os mais jovens ou na população de um modo geral?

Os principais exemplos são o da sífilis e o das hepatites B e C. Isso tem uma relação direta com a redução do uso do preservativo, sem dúvida alguma. Costumo dizer que quem se expõe mais é quem tem mais relações sexuais. Então, evidentemente que os jovens acabam se expondo mais. O jovem se expõe mais por se considerar invulnerável.

A senhora ajudou a combater o preconceito contra os pacientes HIV soropositivos. O preconceito vem, muitas vezes, da desinformação.  Essa equação infelizmente ainda está muito presente, não? 

O preconceito pode reduzir na medida em que aumenta a informação, mas essa equação infelizmente não é direta. Não necessariamente se informar significa reduzir seu preconceito. Muitas pessoas se informam e continuam com os seus conceitos pré-estabelecidos. Esses preconceitos têm uma relação muito forte com a sexualidade e com as vulnerabilidades prévias sobre as quais falamos.

Muitas pessoas vivem há anos com o HIV, sendo indetectáveis e, no caso do vírus, intransmissível. É possível pensarmos na total erradicação do vírus?

Muitas pessoas vivem com o HIV há muitos anos e, com o tratamento, elas deixam de ter carga viral na corrente sanguínea. Então, dizemos que a carga viral está indetectável e que elas deixam de transmitir o vírus. No mundo inteiro isso já é reconhecido. É cientificamente comprovado que quem tem carga viral indetectável não transmite o HIV. Essas pessoas podem ter filhos, podem conversar com seu parceiro ou parceira e optarem por ter relações sem preservativo. Trata-se de uma decisão que envolve duas pessoas. Quem tem carga viral indetectável não transmite o vírus desde que siga seu tratamento corretamente. É importante lembrar que indetectável não é sinônimo de curado. O HIV permanece no organismo em lugares que chamamos de reservatórios.

Crédito da foto: Marcelo de Jesus

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