Certa vez, ao se referir ao timbre de Milton Nascimento, Elis Regina (1945-1982) declarou que, se Deus cantasse”, seria com a voz do compositor e cantor, cujo cancioneiro foi presente em seu repertório. A declaração serve à própria Elis, tão sublime no seu ofício. Elis aliava técnica e emoção na medda certa. E isso é evidenciado em álbuns como “Elis e Tom” (1974), “Falso brilhante” (1976) e os que precederam sua morte, como “Essa mulher” (1979) e “Saudade do Brasil” (1980).
Elis era única e, até hoje, inigualável. E, nesta segunda (17), quando a artista completaria 80 anos, NEW MAG ouviu três grandes nomes da MPB que conheceram, ouviram e assistiram essa grande intérprete em diferentes momentos em que suas vidas cruzaram-se com a dela. São eles o compositor Roberto Menescal, patrimônio vivo da bossa nova, a cantora e compositora Joyce Moreno e a cantora Leila Pinheiro, que teve na Pimentinha uma de suas influências.
Diz o ditado que a primeira impressão é a que fica, e Elis confirmava a regra. Ela era de fato arrebatadora. Menescal conviveu com a artista em diferentes ocasiões, que incluem as noites no Beco das Garrafas – um dos berços da bossa nova no Rio de Janeiro – e as sessões de gravalções de LPs da intérprete na Philips (hoje Universal), gravadora na qual Menesca foi diretor artístico entre idos de 1970 e os primeiros anos da década seguinte.
– Lembro de tê-la visto pela primeira vez num programa de TV, algo nos moldes da “Escolinha do professor Raymundo,” e de ficar louco por ela. Dois dias depois, consegui um encontro com ela e, dali em diante, tive a sorte de trabalharmos juntos em discos, shows e viagens – recorda-se Menescal ratificando a singularidade do canto de Elis: – Ela era inigualável e eu tive muita sorte.
Sorte semelhante teve Joyce Moreno. Contemporânea de Elis na música, elas encontraram-se em diversas ocasiões e, no fim dos anos 1970, tevea canção “Essa mulher”, parceria com Ana Terra, gravada magistralmente por Elis, sendo inclusive o título do LP lançado por ela em 1979. Joyce aponta para três fatores que corroboram a singularidade dessa grande intérprete:
– Acho que posso falar em três coisas que, juntas, fizeram que ela se tornasse única. A voz, coisa de Deus mesmo, um dom, que de pouco adiantaria sem as outras duas coisas, uma delas a musicalidade. Mesmo sem tocar nenhum instrumento, ela tinha absoluta noção de harmonia e ritmo. Era uma cantora-músico. E,por fim, a inteligência para usar isso tudo.
Elis não estava mais aqui quando,em 1986, Leila Pinheiro arrebatou o páis com sua interpretação de “Verde”, samba de Eduardo Gudin e Costa Neto defendido por ela num festival realizado pela TV Globo. Criteriosa que era, Elis teria reconhecido o talento de Leila,dona de um dos mais belos timbres surgidos na cena musical naquela década.
– Elis era uma pessoa vocacionada, que abraçou seu ofício, como diz Fernanda Montenegro, e não desgrudou dele até partir. E o fez com unhas,dentes, ferozmente,apaixonadamente e passionalmente como ela era. E pegou só o melhor. Ela estava cercada pelos melhores músicos, fez as melhores escolhas de compositores e pôde gravar alguns nomes que estavam nascendo como foi com Ivan (Lins) e João Bosco, para falarmos apenas de dois – destaca Leila realçando o rigor que foi uma das marcas da saudosa cantora: – Cercada pelos melhores músicos e arranjadores, ela fazia o que queria e, com eles. Nenhuma artista reúne tantas características a favor do seu canto e a favor de suas escolhas quanto Elis.
Leila reouviu, dias atrás, a gravação de Elis para “Corrida de jangada”, de Edu Lobo e Capinam As qualidades reunidas naquela gravação, realizada em 1966, confirmaram para Leila aquilo que ela já sabia há muito: Elis era única, como ela atesta a seguir:
– Não conheço artistas que eu possa ouvir, 30, 40, 50 anos depois e que me causem ainda a mesma emoção. E causa por que? Porque elaera imensa. Ela era toda inteira no que fazia, com a vocação que tinha, o talento que tinha. Ela imprimiu nas interpretações a personalidade forte que tinha. E dava-se às canções e à música como para poucas coisas na vida. A música era a vida dela, como deve ser mesmo.
E assim foi essa mulher… Como tinha de ser.
Créditos: Christovam de Chavelier (texto) e divulgação (imagem)