Beth Goulart é aquele tipo de atriz que não teme desafios. Filha dos grandes atores Paulo Goulart (1933-2014) e Nicette Bruno (1933-2020), ela não titubeou e seguiu os passos dos pais. Depois de estrear nos palcos aos 3 anos, voltou à ribalta como profissional, em 1974, sendo merecidamente premiada como Atriz Revelação. De lá para cá, construiu, nos palcos e na TV, uma carreira que faz dela uma das melhores atrizes de sua geração. Beth está de volta aos palcos, na nova montagem de “A cerimônia do adeus”, obra-prima de Mauro Rasi (1949-2003), que retorna ao mesmo Teatro Anchieta, no Sesc São Paulo, onde a primeira versão estreou quase 35 anos atrás. Sob a direção de Ulysses Cruz, Beth personifica – com maestria –a escritora Simone de Beauvoir (1908-1986). Sim, essa atriz não teme desafios e volta a viver uma grande escritora, a exemplo do que fez com Clarice Lispector (1920-1977), personificada por ela de forma soberba. “Dizem que um fruto não cai longe da árvore”, reconhece ao falar da influência dos pais nesta entrevista ao NEW MAG. Que bom que Beth saiu aos seus. Sorte a do Teatro Brasileiro – e a nossa.
Você interpreta no teatro uma escritora que ajudou a revolucionar o comportamento feminino, sobretudo em relação à subserviência no casamento. Com qual das bandeiras levantadas por Simone de Beauvoir você se identifica mais?
Creio que a maior contribuição que Simone de Beauvoir trouxe para nós, mulheres, foi o despertar da consciência de nossa liberdade e do desenvolvimento da autonomia às nossas potencialidades. Ela desenvolveu um pensamento em que condenou a inferioridade histórica da mulher, perpetuada pela opressão vinda de uma dependência do casamento e a maternidade como único destino biológico, psicológico e econômico às mulheres. A mulher não é uma realidade fixa. Biologia não é um destino. Somos um processo de tornarmo-nos possibilidades. Quando nos consideramos um ser que é transcendente, passamos a protagonistas de nossas vidas. Ficamos mais conscientes, independentes e livres, abrindo possibilidades de participação na sociedade, no trabalho, nas artes, na ciência, na política, dentre outros assuntos, indo em busca de uma igualdade de direitos e do reconhecimento da nossa voz. A mulher moderna tem uma dívida de gratidão a Simone de Beauvoir.
A novela “Selva de Pedra” deixou subentendido que a tua personagem e a de Christiane Torloni formavam um casal LGBTQIA+. Na época não havia a abertura de hoje. Voltaria a tratar do tema na TV?
Todo personagem tem sua complexidade e amplitude temática. Nós, atores, servimos como instrumentos para levar mais compreensão e entendimento de sua humanidade. Portanto, todo personagem pode acender luzes e debater temas importantes para a sociedade. Todo personagem é bem vindo para um ator ou atriz.
No teatro e no cinema, você interpretou Clarice Lispector, tendo trabalhado o sotaque da autora e ficado parecidíssima com ela. O que é mais desafiador ao compor uma personagem que existiu?
Penso que é encontrar sua essência, quando conseguimos de alguma forma chegar perto dessa luz interior da personalidade retratada, que é única. Em alguns momentos, buscamos em nós pontos de convergência e emprestamos um pouco de nós àquela personalidade. Vira um ser híbrido e é nosso corpo, nossos sentimentos, nossa voz, chegamos num lugar intermediário, guardando sempre a personalidade original de onde partimos para a pesquisa e o mergulho interior. Quando o personagem tem uma história conhecida, partimos desta fonte de informação, dessa pesquisa para extrair daí o universo onde a pessoa vive e atua e, a partir daí, trazemos a informação para dentro de nós e começa o processo antropofágico da criação.
Você foi aluna do diretor britânico Peter Brook. Qual o ensinamento aprendido que você põe em prática a cada novo trabalho?
Não cheguei a ser aluna dele, mas de um discípulo, Daniel Castro. Li muitos livros dele e sou sua admiradora e influenciada por ele na busca da essencialidade cênica. Gosto quando ele diz sobre a “fé cênica”, que é uma verdade que passa a existir entre os atores e a plateia, a criação de um código. Ele costumava dizer, que o público sabe que a morte do Hamlet é mentira, mas quer chorar de verdade pelo personagem. É a catarse que faz com que choremos nossas dores quando choramos a dor do personagem. É a busca de um teatro mais essencial.
Você teve oportunidade de dirigir tua mãe no monólogo “Perdas e ganhos”, inspirado no livro da Lya Luft. Qual foi o principal desafio ao dirigir uma atriz que conheceu tão a fundo?
Creio que o maior desafio foi superar o momento delicado logo após a perda de meu pai. Criávamos uma obra que falava sobre o que estávamos passando e isso foi um desafio e uma bênção. Era um depoimento pessoal, com as palavras da Lya Luft servindo como luva àquele momento de nossas vidas e, apesar de ser doído, foi muito libertador. A adaptação do texto foi feita por mim antes de meu pai adoecer, e ele foi um grande incentivador da montagem, pedindo, inclusive, que ela tocasse piano, o que conseguimos realizar. Minha mãe era uma grande atriz, com uma bagagem cênica impressionante e pudemos ter uma troca significativa. Ela nunca havia feito um monólogo e fiquei feliz por ter contribuído para essa experiência. Sou grata por termos homenageado meu pai através de minha mãe no templo sagrado dos palcos.
Ao estrear, foi agraciada como Atriz Revelação. Sendo filha de dois grandes atores, em algum momento da vida pensou em desistir da carreira? O que faria se não fosse atriz?
Minha vocação apareceu desde muito cedo. Pisei no palco pela primeira vez com 3 anos de idade e sempre quis ser atriz. Minha estreia foi um desdobramento natural dessa vontade, eu brincava de fazer teatro e foi assim que meu padrinho artístico, Antônio Abujamra, assistindo minhas brincadeiras, me convidou para estrear profissionalmente. Sempre gostei de dirigir e de escrever, manifestações de uma mente criativa e inquieta. Se não fosse atriz talvez fosse psicóloga, pois também me interesso por entender melhor personalidades; ou professora, já que gosto muito de ensinar também.
Você é mãe e avó numa família de artistas. Até que ponto influiu nas escolhas do João Gabriel? Qual a principal semelhança e qual a diferença entre a mãe que você é e a que a Nicette foi?
Somos influenciados pelo meio em que vivemos, mas isso não determina a escolha de uma vida. Meu filho se formou publicitário para só depois descobrir que queria escrever dramaturgia. E a vida foi levando-o a descobrir sua vocação. Dizem que um fruto não cai longe da arvore, então a arte sempre estará presente na nossa família. Minha mãe foi uma pessoa excepcional como mulher, mãe, esposa e atriz. Soube conduzir muito bem suas funções, valorizando o amor e o respeito à individualidade de cada um. Generosa, amorosa, alegre, isso serviu como exemplo, apesar de eu ter tido uma trajetória de vida diferente da dela. Éramos pessoas diferentes, mas em essência muito parecidas, e o tempo nos faz descobrir semelhanças que só agora se manifestam. Todas nós, mulheres, ficamos parecidas com nossas mães. No meu caso, que sorte a minha.
Crédito das imagens: Nana Moraes (alto) e Lenise Pinheiro