Existem dois tipos de atores. Os que imprimem a própria personalidade aos papéis que interpretam e os camaleônicos, que surpreendem a cada novo trabalho. Neste grupo podemos incluir Dan Stulbach. O ator nunca é o mesmo, e isso é evidenciado a cada aparição que faz no palco ou nas telas. É assim desde que ele, então com 33 anos, arrebatou o público em “Novas diretrizes em tempos de paz”, peça na qual dividia a cena com um craque na arte de interpretar: Tony Ramos. Dan mostra o ator que é ao dar vida ao personagem central de “O Mercador de Veneza”, de Shakespeare, autor ao qual retorna décadas depois de “Sonho de uma noite de verão”. O texto, em cartaz até domingo (15), no Rio de Janeiro, é reavivado numa montagem contemporânea, afinada a questões atuais. “Tenho fé na humanidade senão não faria o que faço”, explica Dan, por telefone, nesta entrevista ao NEWMAG. A seguir, ele fala do que o faz perseverar na profissão, lamenta a intolerância latente no mundo, reitera sua fé nas mudanças trazidas pela arte e lembra a conscientização em relação à violência contra a mulher trazida pela novela “Mulheres apaixonadas”,sem deitar nos louros: “Ainda há muito a fazer”.
Você volta a Shakespeare pelas mãos do Cesar e do Marcelo numa montagem que ressalta a atualidade do bardo. Qual foi o canto da sereia que te levou a encarar esse desafio?
O tema e o fato de poder voltar a Shakespeare. Era muito garoto quando fiz “Sonho de uma noite de verão”. Li muitas das suas peças e assisti a várias montagens de seus textos e queria voltar àquele universo. A do próprio “Mercador de Veneza”, assisti a com Al Pacino fazendo no Central Park, em Nova York. A peça traz essa indagação importante: até onde o ódio pode nos levar? Estou trabalhando com atores mais jovens numa encenação contemporânea, que estabelece elos com o mundo de hoje. Esse foi outro ponto importante: poder fazer um Shakespeare que chegasse a todos.
Shylock é um agiota. Peer Gynt, um sonhador. Já Édipo quebra um paradigma. O que o personagem precisa trazer para te cativar?
É importante que ele me coloque numa nova dimensão em relação a sentimentos e a questões, diferentemente da que eu já conheça. É importante que o personagem me ensine coisas, que eu aprenda com ele. Ele precisa ter uma resolução de vida diferente da minha. A forma como ele é escrito conta, e a palavra é onde me apoio.
Você nunca se repete num papel, sendo comumente associado ao Tom Hanks quando está mais para Laurence Olivier. Da onde vem essa característica?
Sempre busquei não repetir fórmulas ou caminhos. É difícil controlar como as pessoas te veem, e essa comparação com o Tom Hanks veio disso. Penso que minha imagem vai sendo construída pelo trabalho que faço, e ele tem a ver com o encantamento que tenho pela arte e também por aqueles que vieram antes de mim. A cada novo trabalho, procuro me conectar com pessoas que o fizeram antes. Você falou do Laurence Olivier, que fez o Shylock no teatro. Outro ator que admiro é o Patrick Stewart.
Você descende de uma família de imigrantes. Hoje, as ajudas humanitárias enfrentam mais resistência em atuar nas áreas de conflitos. Como anda a sua fé na humanidade?
Tenho fé na humanidade senão não faria o que faço, da mesma forma que acredito nas mudanças trazidas pela arte, às pessoas e à sociedade como um todo. Vemos hoje uma opulência do ódio, por exemplo. Acho que, de quando em quando, a sociedade consegue perceber essas hegemonias e caminha para reverter isso. Tento manter minha fé na vida e ela está diretamente relacionada ao trabalho que faço.
Em Novas diretrizes em tempos de paz seu personagem é um imigrante que precisa de um salvo conduto para entrar no país. Hoje, há muita intolerância em relação aos expatriados. O mundo ficou pequeno para o homem?
O mundo ficou intolerante às diferenças. Acho que a grande dificuldade está em perceber o outro. Há hoje lutas em prol do respeito e uma consciência de que é preciso fazer uma revisão histórica para revalorizar minorias. Por outro lado há aqueles que vão pela via da não mudança, pela do não avanço. E isso a gente vê nos EUA.
Você trabalhou com o Tony no teatro e no cinema. O que você destacaria nessa troca com um ator do quilate dele?
A generosidade. O Tony tem um interesse genuíno pelas pessoas comuns, o que é totalmente incomum em se tratando de uma celebridade. Ele sabe da importância que tem e tem essa sabedoria de separar o artista da persona pública, numa convivência muito bonita. Ele coloca em prática tudo o que ele fala sobre si. Ele é exatamente como se mostra tanto na vida pessoal quanto na profissional.
Algum fato curioso do convívio de vocês?
Você sabe que, antes de trabalhar com ele, tinha feito a peça com outros dois atores. Um queria o camarim à meia luz porque precisava de concentração. O outro foi e acendeu todas as luzes. Já o Tony perguntou como eu preferia o camarim, se com mais ou menos luz, típico da pessoa bacana que ele é.
Um objeto associado a você foi a raquete, usada na novela Mulheres Apaixonadas. Até que ponto isso te aborrece ou é um sinal de que o personagem furou a bolha?
A TV tem uma vertente que pode levar à histeria, mas há também o lado feliz, relacionado ao reconhecimento após anos de luta na profissão. Uma coisa que sempre busco é a função social de cada trabalho. Ali, a violência doméstica veio para o centro da discussão e nós mudamos uma lei. Uma novela mudou a realidade das pessoas. Avançamos, mas ainda há muito por fazer. O Brasil ainda é um dos países que mais matam mulheres.
O Manoel Carlos percebeu seu empenho e ajudou o personagem a crescer…
O Maneco é um autor que pensa no personagem também a partir do que o ator mostra. Na medida em que a novela avançou, ele escreveu cenas em que pedia um gestual ou uma fala trazidos por mim. Ele tem esse olhar atento ao trabalho do ator.
Você tem um chamego pelos clássicos. Qual autor brasileiro gostaria de levar à cena?
Gostaria muito de fazer “Vereda da Salvação”, do Jorge Andrade, um autor que está esquecido. Nelson Rodrigues, por exemplo, é um que nunca fiz.
Nem na TV?
Quando foi feita aquela série (“A vida como ela é”) eu não estava no time. Há outros autores que gostaria de fazer: Vianinha (Oduvaldo Viana Filho), Maria Adelaide Amaral, uma pessoa incrível a quem sugeri de fazermos (a série) “Queridos amigos”. Estou atento também ao que está sendo encenado lá fora. O fato é que esta peça (“O Mercador”) me mostra o quão prazeroso está sendo fazer teatro.
Créditos: Christovam de Chevalier (texto e entrevista) e Ronaldo Gutierrez (imagem)